quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Leitora de um livro sem nome







Estacionei o carro e fui fumar um cigarro sentado num tronco de árvore caído à beira do rio Belém. Era um daqueles fins de tarde em que pensamos em pensar, sendo que o aconselhável é não pensar em nada, apenas olhar passarinhos, gatos, cachorros, gente caminhando. O mundo desfila à beira do rio e não precisa de pensamento. O mundo apenas está aí.
Foi quando a vi. Uma mulher pequena, magérrima, enrugada, que vive ali mesmo, na rua que margeia o rio. Ali mora e ali passa seus dias. Às vezes ri olhando para a copa das árvores, outras vezes fala sozinha, as voltas com alguma polêmica consigo mesma ou com inimigos atrozes. Mas tem momentos de sonhos e olhares perdidos. Raramente está de mau humor. De bom humor, canta com voz aguda e toca uma viola imaginária. Creio que também exercita essa coisa de esvaziar a cabeça. Não raro, lê. Dobra o livro ao meio, se enrosca num pano velho e esquece do mundo.
Mal acendi o cigarro, ela largou o livro, espreguiçou-se, bocejou, e deu uma geral em volta. A sua frente passou um casal. Ele, gordo. Ela, magra. Ele, bufando. Ela, ajeitando o topete. Metidos em roupas de grife, tênis faiscando.
Foi quando essa mulher que mora ao lado do rio Belém, ergueu o braço e disse um largo bom dia teatral aos dois. Um bom dia brincalhão e amigo. O casal não lhe deu bola. Ela foi ignorada. Eles faiscaram os tênis no asfalto e se foram. Ele, arfando. Ela, cuidando da pose e do topete.
A mulher sorriu. Levantou-se, indicou a dupla que não lhe dera bola com um gesto e me brindou com uma imitação hilariante do casal. Mesmo magra, conseguiu imitar o bundão do homem e seus passos pesados. Mesmo esfarrapada, reproduziu o esnobismo e o topete da mulher.
Rimos os dois.
Terminado o show, veio me pedir um cigarro.
- Só tenho esse, expliquei.
- Serve.
E tomou o cigarro da minha mão.
Mão esquelética, retorcida, os dedos apontando em direções desencontradas. Um era torto para um lado, outro era curvado feito caramujo, outro parecia incapaz de mover-se. De perto parecia ainda mais magra. Esquelética e enrugada. Um rosto feito de barro ressecado. Mas o sorriso é franco e direto:
- Brigado, meu anjo – e lá se foi com o meu cigarro.
Aliás, não foi. Fiz com que parasse, perguntando:
- O que está lendo?
- Um livro.
- Qual?
- Não sei.
- Não sabe? – e foi minha vez de rir: se está lendo, como não sabe?
- Não tem capa, ora!
Sugou o cigarro com deleite e me explicou:
- Leio esse livro todo dia. Mas me esqueço.
- Esquece tudo?
- Quase tudo – e, diante do meu espanto, emendou: É melhor assim.
- Por quê?
- Continuo lendo sempre, ora! Ou o meu anjo pensa que tenho grana para comprar outro livro? Leio esse mesmo, pois esqueci.
Afastou-se e, com o melhor sorriso, gritou:
- Cigarrinho bom, hein? Bom ter grana pra comprar um cigarrinho assim.
E me piscou um olho maroto:
- Tem sorte, meu anjo.
Sentou-se no pano velho que lhe serve de residência, apanhou o livro e, após a última tragada no cigarro, retomou a leitura.