terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Lembranças de tio Mário









Todos o tratavam como tio Mário, numa época em que só os irmãos dos pais eram chamados de tios. Era casado com uma prima de minha mãe.
Um brasileiro autenticamente português, troncudo, cabeçudo, irascível, de humor rude. Poderia ter sido boxeador, pelo tipo e temperamento, mas era carpinteiro e católico devoto.
Excelente carpinteiro. Ao lado de sua modesta casa, que ele mesmo construíra, havia uma carpintaria. Uma mesa de trabalho sempre coberta de cepilho. Pelas paredes dependurava as ferramentas das quais ninguém podia se aproximar. Depois de anos fabricando móveis, agora trabalhava para a Igreja de Nosso Senhor dos Passos, ao lado do bairro Saco dos Limões, em Florianópolis.
Era carola como só se fazem em Trás-os-Montes. Homem de sizo fechado, mãos calejadas e fortes, tinha convicções inabaláveis, ou seja, todos os dogmas católicos e versículos da Bíblia. Não ria jamais – ou não me lembro dele rindo. Saía cedo para o trabalho e voltava ao final do dia, exausto.
Sentava num banquinho colocado no quintal da casa. Levantava as pernas das calças e sua mulher, a doce e miúda tia Celina, vinha lhe tirar as meias, deixando expostas as imensas varizes que transformavam suas pernas num enodoado de raízes, de veios e de veias, de nódulos e calombos – um território devastado. Tia Celina lavava suas pernas com algodão umedecido, passava pomadas enquanto ele mirava um ponto qualquer no infinito, fingindo não sentir dor e só movendo a cabeça quando nós, as crianças, passávamos em correria e aos berros. Ele resmungava:
- Essas pestinhas não ficam quietas!
Era um homem bom? Um homem mau? Não sei. Sei que era um homem carrancudo. Com certeza um homem triste. Tomado por convicções inamovíveis, tinha do mundo e dos homens ideias muito bem definidas.
Por exemplo: quando, em 20 de julho de 1969, Neil Armstrong pisou na Lua, tio Mário saiu do mutismo e soltou a língua. A razão era essa: o feito do astronauta abalava uma convicção que enunciava com o indicador em riste: o homem jamais chegará à Lua! E arrematava: como é que o homem poderá pisar num astro feito por Deus?
Eu, abusado, bati com os pés no chão de barro do quintal:
- Eu não estou pisando em uma coisa feita por Deus, tio Mário?
Ele bufou. Oscilou os ombros de boxeador, mas conteve-se. Foi se trancar na marcenaria. Americanos passeando na Lua era coisa de ateus.
- Esse astronauta dando pulinhos é truque de Hollywood!
Mas as lembranças mais fortes que tenho dele são as procissões. Tio Mário surgia numa imensa bata negra, segurando uma vela gigante, na procissão de Nosso Senhor dos Paços. No rosto, uma determinação absoluta e assustadora. Eu, naquela noite escura, respingada pelo tremular das velas, me encolhia junto à minha mãe. Era um espetáculo sinistro. Um Cristo esquálido retorcido na cruz, rios de sangue brotando dos ferimentos, enquanto mulheres entoavam em tom agônico cantos que pretendiam nos conduzir além das nuvens, ao domínio de anjos e santos, lá onde estariam os limites em que terminavam o mundo e as coisas sabidas pelos homens.

sábado, 26 de janeiro de 2019

É a lama, é a lama, é a lama.




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A tragédia ocorrida em Brumadinho fez com que eu lembrasse uma lição que foi dada a mim e a meus colegas de ginásio por um professor irrequieto e inteligente chamado frei Odorico Durieux, que lecionava língua portuguesa no colégio Santos Antônio, em Blumenau.
Nós fomos em comitiva perguntar ao frei Odorico se ele poderia nos dar aulas particulares, pois estávamos em segunda época e a situação era crítica.
O frade, que era dado a muitos cacoetes, empinou o charuto na boca, enfiou as mãos na manga da batina e de lá retirou um lenço, com o qual enxugou com aflição o suor do rosto e da careca brilhante. E disparou, furioso:
- Vocês não tomam jeito! Só depois de a criança cair no poço, pensam em fazer uma tampa!
Estava dada a bronca, com o que aceitou dar as aulas particulares que nos salvaram, pois naquela época reprovação era para valer.
Pois em Brumadinho ocorre esse fenômeno no qual o Brasil parece se especializar. As tragédias não apenas ocorrem com regularidade como repetem tragédias anteriores. Uma xerox do ocorrido ontem. Um clone do desastre anterior. Um cover do fracasso da véspera.
Em várias situações temos visto a reprise do mesmo filme. Brumadinho replica Mariana, que repete os desabamentos em Niterói, os viadutos que desabam em São Paulo, o incêndio na boate gaúcha.
Os leitores não estranhem misturar um desastre numa boate com o deslizamento de terras ou de lama. Ocorre que, em todos os casos – e são muitos – há a presença de um fator desencadeante único.
Por falta de um cuidado necessário, uma desgraça ocorre. Isso é comum no Brasil, onde se pensa mais em tirar foto da inauguração do que em preservar a integridade do que foi feito. Os bombeiros não vistoriaram a boate Kiss como deveriam. As barreiras não foram avaliadas conforme era norma, tanto em Mariana quanto em Brumadinho. O poço foi deixado sem tampa por alunos displicentes.
Muitos barcos naufragam no rio Amazonas, onde, no entanto, outros barcos continuam saindo rio afora nas mesmas condições de insegurança, sem salva vidas e com superlotação criminosa. E novos desastres ocorrem, é claro.
Não se trata de acidente, portanto. Acidentes são imprevisíveis. Um tsunami ou a explosão de um vulcão ou um terremoto surgem sem controle e sem previsão. Por isso são acidentais.
Essas tragédias brasileiras, aí incluídas quedas de viadutos, o incêndio de um prédio ocupado caoticamente por sem tetos, a boate atopetada de revestimentos altamente inflamáveis, são fatores controláveis aos quais não de se deu a atenção e o cuidado devido.
Mas há outro fator. A leniência não só das autoridades, mas da própria sociedade brasileira, que tem horror às punições. A Vale do Rio Doce, os donos da boate Kiss, os líderes oportunistas do movimento dos sem teto, quem atestou que as represas eram seguras, são os responsáveis pelas tragédias e devem ser punidos, o que não ocorreu nos casos anteriores. Agora será diferente?
Eis o que precisamos mudar no país. Não se trata de questão episódica que envolva picuinhas partidárias ou pseudo-ideológicas; é uma questão visceral, interna à sociedade brasileira, sempre imersa na leniente cordialidade tal como analisou Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil.
Enquanto não nos convencermos do valor central do cuidado com a coisa pública e da exigência de que a punição aos que a ferem tem que ser exemplar, estaremos sujeitos à censura de um pequenino frade franciscano chamado frei Odorico, meu professor.
- Tomem tento! ralhava ele.









terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Mitologias e Mitomanias na presidência brasileira




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Uma das características dos mitos é a banalidade. De tanto tropeçar neles, somos levados a julgar que são naturais. De fato, naturalizamos os mitos. Com o que eles adquirem vida própria.
Explicando o que penso: é nas fantasias que criam a respeito de si mesmas que as nações e os povos se retratam mais fielmente.
Penso em três figuras míticas criadas pelos brasileiros: Jânio Quadros, Fernando Collor e Jair Bolsonaro.
Jânio era apenas um tipo extravagante que naquelas eras anteriores à internet parecia circunscrito aos limites de São Paulo. Era hábil em fazer caretas e usava um vocabulário que seria música aos ouvidos de outro mito nacional, Rui Barbosa. Tratava-se de uma linguagem supostamente erudita, cheia de mesóclises, adornada com penduricalhos arcaicos e vocábulos raros, algo semelhante à gíria que falam os advogados em geral. Bebedor profissional, era um individualista. Não se filiava a nada nem a ninguém. Como se sabe, o mito é autossuficiente. Surgiu e desapareceu no cenário da política brasileira com a velocidade dos relâmpagos. Era muito jovem para um presidente, 44 anos.
Fernando Collor tinha os mesmos olhos fixos e nervosos de Bolsonaro. Olhar insano.  Chegou jovem à presidência, 40 anos. Era um desconhecido das longínquas Alagoas. Apresentava-se como um “caçador de marajás”. Encantou multidões, inclusive uma estação de TV poderosa. O que pensava e qual seu norte ideológico? Ninguém sabia. Sabia-se apenas que seria um caçador de marajás capaz de fazer uma limpa na política brasileira. O que Jânio ameaçara varrer com a sua vassourinha moralista, Collor faria com seu olhar incendiário.
O terceiro mito dispensou disfarces, catalogando-se como o Mito e arrastou seguidores e adoradores. Donde veio? Da caserna e de mandatos legislativos em seu estado natal, o Rio de Janeiro, que não tem produzido políticos de alto nível. Não tão jovem quanto os outros dois, chega à presidência com 63 anos. Tem língua solta, tal como Jânio e Collor, se bem que seu léxico e sua sintaxe não possam concorrer com o homem da vassoura, estando muitos degraus abaixo. Fala aos arrancos. Dispara chavões. Bem analisado, domina um vocabulário ralo e tem uma bagagem intelectual feita de verdades prontas, como soe acontecer aos egressos da caserna.
Esse mito tem origem paradoxal: se tornou possível pelas trapalhadas e vigarices do partido que acumulou o maior número de desastres em nossa história, o PT, sem o que seguiria circunscrito aos limites da Guanabara.
Bolsonaro não tem nada que possa ser considerado um ideário filosófico e político. Sustenta-se em máximas da direita, as mesmas que Trump adotou. Dispara frases e palavras, algumas óbvias, outras disparates. Mas todas ao gosto de eleitores que, carentes de tudo, agarram-se ao durão da vez.
Três extravagâncias que têm em comum a reencarnação do Sebastianismo, mito nacional que prolonga o mito português. Dom Sebastião, como se sabe, morreu em 1578 na batalha de Alcácer-Quibir. Ferido, seu corpo não foi achado, o que deu origem à crença de que estaria vivo e que voltaria para salvar Portugal. Nascia o mito do herói messiânico que iria redimir a nação.
Quanto a mim, lembro Millôr Fernandes: “País que precisa de um salvador não merece ser salvo”.