segunda-feira, 26 de março de 2018

O diabo mora na tipografia







  
Revisar textos é tarefa inglória. Por mais neuróticos que sejam os revisores, sabemos de antemão que algo escapará, algum descuido mais ou menos grave ficará numa página tantas vezes vista e revista. Fernando Sabino falava disso numa crônica antiga, lembrando um ditado que circula desde Gutenberg pelas oficinas gráficas: “o diabo mora na tipografia”.
Desde que me meti a escrever e editar livros, sou perseguido por uma sina particular. O livro pronto, chegado da gráfica, é retirado do pacote. É um prazer insuperável. O cheiro de livro recém-saído da gráfica só é comparável ao do pão recém-saído do forno.
Mas é quando entro em pânico.
Sei que vou abrir aquele livro exatamente numa página que contém um erro, não raro o único erro de todo o livro. Numa editora que dirigi, os funcionários me traziam os livros recém-editados com o coração aos pulos. Estavam convencidos de que eu abriria numa página com algum erro de revisão. E não dava outra: lá estava a vírgula fora do lugar, o ponto duplicado, o parêntesis que não foi fechado, o travessão inesperado, o s no lugar de um z. A gafe brilha e ocupa todo o espaço da mancha impressa, ri de nossos cuidados.
É um problema que merece reflexão. Deve haver em algum lugar do cosmos uma conspiração das letras, das máquinas, das palavras, quem sabe obra de algum espírito brincalhão que se mete entre as páginas. Talvez circulem no mundo palavras em demasia, livros em excesso, páginas redundantes. Os deuses da literatura nos castigam com essas gafes para que não percamos a humildade.
Era 1980. Numa bienal do livro minha atenção foi despertada por um sujeito que estava expondo xilogravuras num corredor anexo. Fui bisbilhotar. Eram obras de um bom gravurista, chamado Marcelo Soares, munido de chapéu de aba larga e boa lábia nordestina. Conversamos e, lá pelas tantas, descobri o que me levara àquele lugar.
Misturada a outras gravuras, encontrei uma intitulada “Lampião chutando o traseiro do Diabo.” Eis a razão pela qual eu fora à Bienal, pensei. Lampião desferindo um potente chute na bunda do Diabo me pareceu uma imagem perfeita para os dramas que enfrentamos ao editar.
Comprei a gravura, mandei emoldurá-la e ela está até hoje comigo, aqui na parede ao lado, como uma espécie de santo protetor dos escritores, editores e revisores. Com esta xilogravura por perto, me sinto mais tranquilo, mas, é claro, não livre de erros. Quando eles acontecem, vou até a xilogravura e, como fazem devotos de outros santos, discuto com Lampião, reclamando por ele não ter evitado esse tropeço. Um homem tão poderoso, digo a ele, capaz de colocar em debandada os macacos da Volante, como não me protegeu dessa ridícula vírgula fora do lugar?
Lampião nem me olha. Limita-se a desferir novo chute na bunda do Diabo, pois sabe que todos, no jornalismo, na literatura, na redação de um modesto ofício, vivemos aterrorizados com a possibilidade de uma simples vírgula se transformar num holofote.