sábado, 31 de dezembro de 2016

A arte de furtar



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Não se sabe quem escreveu “A Arte de Furtar”. Na busca de um autor, muitos quiseram atribuir a criação dessa obra prima, além de vários outros, ao Padre Antônio Vieira (1608-1697)  ou ao Padre Manoel da Costa (1601- 1667), polêmica que rola nos últimos quatro séculos. Não se sabe, pois, se foi o Antônio ou o Manoel. Será que importa? Trata-se de um anônimo, ponto final.
No caso de A Arte de Furtar, é admirável a coragem das denúncias que faz – o autor, que não era bobo, se escondeu no anonimato – e das análises de cunho sociológico e cultural que levanta. É um livro admirável. Vale a leitura.
Mas quero destacar que o livro tem atualidade apesar de sua idade já secular. Quem sabe ajude a salvar do lixo da história o ano que está acabando.
Como se sabe, fala-se muito em impunidade no Brasil. Por conta da impunidade temos a continuidade e o aprofundamento dos crimes cometidos. Embora isso seja a mais cristalina verdade, não é toda a verdade.
Vejamos.
Diz o autor anônimo, já ao final do livro: “Duas coisas há que facilitarão muito os ladrões a furtar: uma é o que sobeja neles e a outra o que falta em nós”.
Essa frase é uma preciosidade. Até porque faz com que olhemos para as duas faces de um fenômeno social. De um lado quem furta e, de outro, quem é furtado.
E nos lembra que as duas coisas não podem ser entendidas se não as pensarmos juntas. Ora, o que falta em nós é o que move ladrões de galinha e políticos e empresários corruptos a cometer crimes novos e mais ousados.
Voltando ao anônimo: “sobeja neles cobiça para nos roubarem e falta em nós justiça para os emendarmos”.
Em busca de uma saída, o anônimo desenvolve uma parábola na qual duas senhoras – Dona Justiça e Dona Cobiça – se agridem numa briga no Terreiro do Paço. Ocorre que Dona Cobiça acerta um soco nos olhos da Dona Justiça e lhe arranca um olho, o que fez com que imaginasse que a tivesse matado. Temendo por sua sorte, correu ao Paço em busca de ajuda. Foi então advertida de que ali seria punida, sendo homicida e ladra. Dirigiu-se então ao Corpo Santo, mas ali a avisaram que se arriscava a ser enviada ao Brasil, onde poderia cair nas unhas de holandeses. Acabou indo à Rua Nova, pensando em se esconder nas lojas dos mercadores e, em seguida, na Rua dos Ourives – nos dois casos não a atenderam.
Tentou abrigar-se então em algum mosteiro, mas todas as portas lhe foram fechadas. Padres e freiras tinham outras preocupações. No castelo, o mesmo. Ela então – na expressão deliciosa da época – “se deu em ladra” e passou a roubar a olhos vistos, até mesmo o soldo dos soldados e as riquezas da Fazenda de el-rei. Temendo ser enforcada, passou-se para Castela, sem passaporte, onde assolou os espanhóis com tributos tais que esses, para se repararem, dirigiram-se ao Novo Mundo, onde, “só na ilha de Cuba (...) mataram mais de doze milhões de índios para se encher de ouro”. Esquartejaram crianças, queimaram vivos caciques e reis, degolaram imperadores – e assim devoraram serras de prata e montes de ouro, que mandavam à Espanha para que pudesse fazer a guerra a toda a Europa.
Em meio ao caos reinante, resolveu-se chamar a Dona Justiça para reparar os estragos, mas esta, sendo agora caolha – um de seus olhos, lembro, fora arrancado pelo murro da Cobiça – nada podia fazer. Colocaram nela então um olho de prata, mas o arranjo ficou deformado. Os homens aguardaram então que Deus condenasse a Cobiça ao inferno.
E, candidamente, diz o Anônimo: “Não sei se me tenho declarado”. E, para não haver dúvidas, arremata: “Quero dizer que a cobiça é a mãe de todos os ladrões e que a justiça se lhe acanha quando não é direita”.
Então, concluamos nós, a quatro séculos de distância: que se cortem as unhas aos ladrões e que sejam punidos na sua medida, do mais pequeno ao mais alto arregimentador de propinas.
Sem Dona Justiça caolha, é claro.
E que 2017 nos seja leve.








sábado, 24 de dezembro de 2016

Sequer um nome





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Ali estavam os dois, falando baixinho ao telefone, pois as paredes têm ouvidos, como sabemos. Trocavam conversa fiada naquele dia de frio e chuva fina, dessas que não existem para irrigar o solo, mas para encher a paciência dos viventes que querem apenas uma janela para olhar o mundo lá fora.
- Você não acha curioso?
- O quê?
- Nós dois aqui conversando.
- Não – fez uma pausa cheia de surpresa. – Quer dizer, acho.
Houve um silêncio longo, que só eles poderiam entender. Ela aproveitou para ir até o quarto e pegar uma manta na qual se enrolou. Voltou amaldiçoando o frio.
- Que disse?
- Nada. Reclamei do frio.
Ela retomou a conversa:
- Você dizia que...
- ...acho estranho estarmos conversando tanto. Mal nos conhecemos. Já notou que só ao telefone conseguimos conversar? Quando nos encontramos é um tumulto, nem dá tempo para conversar.
Um encontro ao acaso, numa reunião de ex-alunos. Nunca haviam se encontrado. Começaram a conversar no refeitório, segurando bandejas, servidos por senhoras que sorriam educadamente e perguntavam se queriam mais alguma coisa.
Foram direto para o hotel no qual ela estava hospedada. Entraram no quarto sem se tocarem. Após o corredor estreito, sentaram-se na cama, como se não soubessem o que fazer. Ela vestia uma blusa azul e uma saia branca. Ele vestia uma camiseta vermelha e um jeans comprado no dia anterior. Estava quente, era verão. Sem entender por qual razão, se sentiam felizes.
- Não é curioso? Mal nos conhecemos e...
- ...parece que sabemos tudo um do outro.
Desconheciam até aquele momento os nomes um do outro. E decidiram que seriam melhor assim.
- Verdade. E não sabemos quase nada de...
- O número dos telefones. Só isso.
- Eu esperava por alguém assim, que falasse comigo sem exigir nada.
- Por isso nem perguntei teu nome. Achei que...
- Eu também. Um nome às vezes atrapalha.
Ela tentou dizer alguma coisa. Não conseguiu. Ficaram em silêncio. Ele retomou o fio da conversa:
- Dia desses minha família veio em comitiva conversar comigo. Não nos reuníamos há seis meses. Ficaram horas me questionando. Meu cabelo, meu dinheiro, meu envelhecimento, minhas dores nas costas, meu desânimo.
- Igualzinho. Conheço esse filme.
- Por que será... – não conseguiu completar a frase.
- É muita chateação, concluiu ela.
Separados por quilômetros de distância, deram a mesma gargalhada e combinaram que logo marcariam mais um encontro.
- E onde será? perguntou ela.
- Lembra de...
- Não. Já fomos lá duas vezes. Que tal?...
- Já sei!
Acertaram os detalhes em seguida, dia, hora de chegada e – só de molecagem – escolheram antecipadamente o vinho que tomariam.
Não sabiam nada um do outro, mas eram quase felizes.





domingo, 18 de dezembro de 2016

Greca e Oficina de Música de 2017.







Nem um mês antes da realização da 35 Oficina de Música de Curitiba, Greca, o novo prefeito, solicitou que Fruet, o prefeito que está de saída, determinasse o cancelamento do Festival. Fruet disse que não cancelará coisa alguma e o impasse está feito. Dizem que amanhã, segunda-feira, afinal saberemos se o festival será ou não realizado.
Mas será razoável pedir ao prefeito que sai para anular um evento de tal importância? Será razoável cancelar um evento que dá prestígio internacional à Curitiba e que já se realiza há trinta e cinco anos? Como ficam os professores contratados, os músicos com viagem marcada, as centenas de estudantes que, como ocorre a cada Festival, invadem a cidade para brindar a todos com música da melhor qualidade? Note-se que os números são avantajados: 1.143 alunos se matricularam para os 90 cursos oferecidos. São cem os professores que virão de onze países.
É um disparate querer brecar em cima da hora tal movimento de tantos interessados.
Greca alega – e a desculpa é velha – que usará os recursos do festival em saúde pública. Primeiro, não se sabe se isso será verdade, sobretudo com gente que pretende dar calote na véspera de um evento. Segundo, se há alguma coisa que dará alento à saúde mental e espiritual dos curitibanos é boa música.
Talvez se trate de uma dessas ações dignas de um tipo de administrador que senta o traseiro numa banqueta e, rabiscando na prancheta, brinca de ser Deus. Cortem-se os espetáculos, cancelem-se os cursos, os estudantes que toquem em outra freguesia, os professores já contratados que se queixem ao bispo.
Ocorre que brincadeiras de Deus costumam custar caro. Como o evento inicia seis dias após o prefeito eleito assumir, e como Fruet já declarou que não vai cancelar coisa nenhuma, se Greca insistir no cancelamento teremos o caos. Choverão, além de gritarias justificadas na imprensa e nos meios culturais, processos por parte de quem se sentir prejudicado.
Enfim, começa mal esse prefeito que os curitibanos, sabe-se lá por qual esquisitice, resolveram reconduzir à prefeitura. De resto o prefeito que sai não se vai com melhor figura, inclusive no episódio do festival.
Em todos os casos, há três dias a Secretaria Municipal de Finanças, garantiu o repasse da verba necessária. Outros dizem que amanhã o nó desata ou ata. Teremos então um braço de ferro entre o prefeito que sai e o que entra. A não ser – e seria igualmente indesculpável – que Greca, como é de seu feitio, esteja armando uma jogada. Talvez retroceda em sua proposta destemperada.
Para quem já pariu um barco que jamais navegou, talvez não seja tarefa difícil.








terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Fotografias, selfies – e o tempo não para.



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Dia desses, enquanto o Papa Francisco rezava no balcão, a multidão na praça de São Pedro estava coberta por celulares.
Com aquela senhora considerada enigmática, a Monalisa, sempre cercada por uma multidão, acontece o mesmo. Sobre as cabeças, os celulares. As fotos sairão fora de foco, pessimamente enquadradas, com problemas de iluminação.
Mas isso importa? Não. Se os turistas quisessem uma foto da Monalisa, iriam a qualquer barraquinha nos arredores e comprariam uma foto bem feita, bem enquadrada, em reproduções de ótima qualidade.
Ou seja: o que menos importa é o quadro. A fotografia tirada da Monalisa dirá apenas: eu estive ali. Importa o dono do celular, o eu. Não importa a Torre Eiffel ao fundo, as Cataratas do Iguaçu, o Big Bem esfumaçado lá longe. Importa o turista se exibindo.
O ego em primeiro plano, o mundo em segundo.
A paisagem é pretexto.
Por isso as selfies me intrigam tanto. São uma espécie de não-fotografia. Nelas os rostos saem bolachudos, os lábios parecendo estufados por botox, os olhos arregalados e o sorriso mecânico. No entanto, é a glória. O fotografado esteve lá ou esteve com. Logo essas fotos serão exibidas numa reunião familiar na qual, em dez minutos, todos estarão bocejando.
Nessa compulsão por fotos de si mesmo, se encontra a eterna ansiedade humana, hoje lutando contra o anonimato. Quem fotografa está sempre fotografando a si mesmo. E tenta vencer o tempo, aprisioná-lo num arquivo digital. E quer sair da multidão.
É inútil querer fixar o tempo. Não só pelas selfies, mas pela busca da eternidade em vida, na obstinação da forma física, das academias, das vitaminas, das cirurgias plásticas. Haja cliques e haja botox.
Ocorre que o que se fotografa também envelhece. Basta observar uma foto tirada há alguns anos. Aquela da formatura, de uma viagem à praia, do baile de casamento. Veja como tudo ali envelheceu. As calças estão fora de moda, as camisas parecem jeca, as blusas, uns trambolhos. E os penteados? Quem hoje sairia à rua com um penteado empinado por litros de laquê?
Eis aí: o que fotografamos envelhece, mas as boas fotos, não.
Se olharmos essas fotos com atenção, observaremos que casas, móveis, ruas, vestes, tudo mudou e conta uma história.
O motivo é simples: a fotografia, ao contrário da crença geral, não registra o presente. Registra sempre o passado. Mesmo quando foi tirada há segundos.
Anos depois, a cena retratada chega a ser motivo de riso pelas roupas e chapéus e sapatos. As fotos registram justamente isso: o tempo não para.
No entanto, envelhecer é uma virtude das fotos. Registrar o passado é seu grande mérito. O equívoco é coloca-las no lugar do presente. O turista mal estaciona diante da Monalisa, mal sabe quem foi Da Vinci, e já dispara a foto e capta um incomum povoamento de cocurutos no rodapé do quadro famoso.
Por isso é bom cuidar do mundo a nossa volta, é nele que vivemos. Observe atentamente a Torre Eiffel e compre uma foto na banquinha da esquina. Observe extasiado as Cataratas do Iguaçu e mergulhe por inteiro naquele espetáculo colossal. Se quiser, tire fotos, mas saiba que elas não substituem sua experiência pessoal.
A fotografia é um dos instrumentos mais notáveis de que dispomos. Pode ser uma arte refinada. Nos ensina, nos humaniza, nos diz de onde viemos, o que éramos, quem eram nossos pais e avós e como viviam, registra um mundo inteiro de experiências pessoais e culturais.

Mas sempre no passado. Então, desça do ônibus com calma, percorra o parque, a praça, a rua, olhe para os prédios e para as pessoas, as telas e esculturas e não deixe que o celular, mais uma vez, tome o lugar de seus olhos, de seu cérebro, de sua sensibilidade.





segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Quarta Expo de Ateliê DALA STELLA


Recomendo a todos que não percam a oportunidade de visitar a Exposição de Ateliê do artista plástico Carlos Dala Stella. Não bastasse o valor do trabalho do Dala Stella, o ateliê onde ele trabalha fica num verdadeiro paraíso, com um bosque ao alcance da mão. Não perca.

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segunda-feira, 14 de novembro de 2016

O poema de Antonio Machado - Caminante no hay camino




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Proverbios y cantares (XXIX)(*)



Todo pasa y todo queda,
pero lo nuestro es pasar,
pasar haciendo caminos,
caminos sobre el mar.

Nunca persequí la gloria,
ni dejar en la memoria
de los hombres mi canción;
yo amo los mundos sutiles,
ingrávidos y gentiles,
como pompas de jabón.

Me gusta verlos pintarse
de sol y grana, volar
bajo el cielo azul, temblar
súbitamente y quebrarse…

Nunca perseguí la gloria.

Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.

Al andar se hace camino
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.

Caminante no hay camino
sino estelas en la mar…

Hace algún tiempo en ese lugar
donde hoy los bosques se visten de espinos
se oyó la voz de un poeta gritar
“Caminante no hay camino,
se hace camino al andar…”

Golpe a golpe, verso a verso…

Murió el poeta lejos del hogar.
Le cubre el polvo de un país vecino.
Al alejarse le vieron llorar.
“Caminante no hay camino,
se hace camino al andar…”

Golpe a golpe, verso a verso…

Cuando el jilguero no puede cantar.
Cuando el poeta es un peregrino,
cuando de nada nos sirve rezar.
“Caminante no hay camino,
se hace camino al andar…”

Golpe a golpe, verso a verso.




(*)Normalmente se publica apenas uma estrofe desse poema que faz parte dos Proverbios y cantares. Por isso me pareceu importante divulgar toda a passagem que tornou célebre os versos sobre nossos "caminos".

domingo, 6 de novembro de 2016

Curitiba – a descoberta do frio




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Mais tarde eu entenderia que há um grande número de coisas que só se aprende em Curitiba. A primeira delas foi conviver com o frio.
Eu vinha de Blumenau, cidade quente, tocaiada no meio de um vale onde o sol parecia eterno. Ao chegar a Curitiba encontrei um frio miserável. Além disso, havia a neblina. E o vento. O vento era o pior.
Fui morar numa pensão na Carlos de Carvalho.
Mas devo falar do frio, que para mim não existia. Cheguei em março. Para meu espanto, chovia e fazia frio. E havia neblina e ventava. Vim com as roupas que tinha e saí em busca do que fazer naquela cidade que eu visitara anos antes e que fora para mim um assombro: bares, muitos cinemas, livrarias, boates com strip-tease, mulheres muito dadivosas.
Mas eu vivia na maior solidão, o nariz enfiado em livros e jornais, discutindo com meu colega de quarto como sairíamos da quartelada militar em que fôramos metidos. De um lado, os milicos, do outro, o frio.
A primeira descoberta: o frio não era algo externo. O frio não estava fora de nossos corpos. O frio saltava para dentro de nós, vinha residir em nossos ossos. Primeiro ele gelava as canelas, em seguida fazia com que arcássemos os ombros a ponto de sentir dores musculares. Só me restava tremer.
Arranjei emprego no escritório de uma firma que distribuía açúcar e, depois, no escritório de um engenheiro estupidamente grosso, que nos enchia o saco, o meu e o de um pernambucano que trabalhava na outra mesa de desenho. Para espantar o frio, nosso esporte era planejar como jogaríamos o tal engenheiro do alto do edifício Asa.
Esse estado de calamidade friorenta durou uns três meses. Foi quando afinal me ocorreu nova compreensão do clima da cidade. Trouxera uma maleta com camisas de manga curta, calças de tergal, meias comuns e sapato. Em Blumenau jamais precisara mais do que isso. Deu-se então uma enorme iluminação na minha pobre cabeça: havendo frio era preciso se agasalhar, coisa que ainda não me ocorrera.
Só então percebi que os curitibanos andavam encapotados, alguns com cachecol, outros com blusas de lã por cima de camisas de tecido grosso. Achei estranhíssimo. Não seria um exagero? Até então me parecia que, havendo frio, de qualquer grau que fosse, bastaria me habituar a ele.
Estava enganado. Levei dois meses para me convencer de que precisava providenciar um estoque de blusas e casacos, meias de lã, gorro, cachecol e algo que me deixou estarrecido: era preciso usar ceroulas, me diziam. Ceroulas?! Mas ceroulas era coisa de um tempo antiquíssimo, que só vira em comédias do cinema mudo, nas quais sempre havia um tipo ridículo que saltava da cama usando ceroulas.
Resisti. Mas fui obrigado a me render. Comprei ceroulas.
Esse arsenal termodinâmico amenizou meu sofrimento, mas o frio continuava mergulhando para dentro do meu corpo, enregelando meus ossos. O frio residia dentro de mim. E, embora não soubesse, essa era apenas a primeira das lições que aprenderia com Curitiba. Haveria outras, tão ou mais enregelantes.






quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Nobel para Bob Dylan e cartão vermelho para a Literatura.




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Só curto comentar esse tipo de notícia com algumas semanas de distância. Enquanto isso me divirto com os comentários e as bobagens que são ditas pelo caminho e, tratando-se de literatura, me engasgo de tanto rir com aqueles que tomam carona em um fato ligado às letras para fazer pose de inteligente.
Com o prêmio Nobel conferido a Bob Dylan deu-se o mesmo. Os jornalistas – criaturas atarantadas em busca do inédito – se limitaram às loas e ao mantra inevitável: “o primeiro cantor e compositor a receber o Nobel de Literatura”.
Então, vamos lá.
Antes de mais nada, sou fã de Bob Dylan. Não só das letras quilométricas como das melodias, que costumam ser deliciosas e hipnóticas. Mas também gosto dele por uma esquisitice minha: gosto de vozes estranhas, esquisitas, rascantes, roucas – ou de vozes que me parecem assim. Por exemplo: Nelson Cavaquinho, João Donato, Guinga, Cássia Eller, Billie Holiday. Além de outras qualidades, gosto da estranheza de certas vozes. Bob Dylan é assim.
Além disso, embora tenha sido batizado com um nome monumental – Robert Allen Zimmerman – teve o bom gosto de se batizar Bob Dylan em homenagem ao grande poeta galês chamado Dylan Thomas.
Por essas e por outras, gosto do Dylan.
Mas, nada me parece justificar esse prêmio Nobel. Ou melhor, o prêmio dado a Dylan não acrescenta nada a ele e manifesta uma coisa que a meu ver escapou a todos os jornalistas e críticos que abordaram o assunto: a literatura acabou.
Acabou não como produção de certos indivíduos que insistem em escrever obras literariamente valiosas, mas como fenômeno social. E isso nada tem a ver com sucesso ou vendagem; refiro-me à presença cultural da palavra escrita. Aliás, o mesmo aconteceu com o cinema. O cineasta Héctor Babenco, pouco antes de falecer, disse literalmente: “o cinema, tal como nós o entendíamos, está morto”.
Eis a lição involuntária que o Nobel deu a respeito do papel da literatura no mundo atual. Se no cinema o que resta são explosões, efeitos especiais, mundos fantásticos, delírios sobre reinos e deuses e heróis e aventuras, quando não uma óbvia glamorização da violência, na literatura restou a retomada do romance fácil, baseado em enredos, na identificação imediata dos conflitos e de personagens planos, tudo misturado com uma receita de reportagem jornalística e oportunista ora sobre etnias, ora sobre sexualidades, ora sobre crianças abandonadas, ora sobre imigrantes, ora sobre estupro etc.
Ou seja, o cinema tal como o conceberam Fellini, Kurosawa, Chaplin, Orson Wells, John Ford, Antonioni etc. etc., faleceu. E a literatura, tal como a conceberam Tolstói, Dostoievski, Kafka, Proust, Machado de Assis, Eça de Queiroz, Dalton Trevisan e João Cabral de Mello Neto etc. etc., também acabou. Restam pruridos palavrísticos, brincadeiras gratuitas, poemetos a consolar espíritos mais simples, e uma grande vontade de aparecer, de ser celebridade por parte de escrevinhantes.
Por isso, ao dar o prêmio a um cantor/compositor (por mais que ele mereça todos os elogios enquanto tal) significa que a literatura acabou. E me perdoem citar aqui, em causa própria, o personagem de um romance que publiquei em 2011, O conhecimento de Anatol Kraft. Dizia o sábio Anatol: a literatura acabou.
Resta um amontoado de historinhas para boi dormir. Com as exceções conhecidas, o que se publica é literatura água com açúcar, lamentos juvenis, relatos de depressões tardias, truques narrativos de olho numa adaptação para o cinema ou para a televisão etc. Não têm o impacto nem a importância que tiveram os escritores de uma era literária que parece ter chegado ao fim.
Razão pela qual os escritores que hoje insistem em escrever literatura de valor perderam totalmente a penetração cultural, ou seja, não repercutem socialmente, não criam polêmicas e debates, não ajudam à sociedade a se reinventar. Dada a crescente onda de analfabetismo que assola o mundo dito civilizado, ninguém os lê, nem pensa neles, são cartas fora do baralho. O que eles pensam e escrevem não tem a menor importância.
Eis o que o Nobel dado a Bob Dylan significa.





terça-feira, 18 de outubro de 2016

Era uma vez meu pai







Meu pai foi criador e personagem de uma infinidade de histórias. Algumas delas ele transformou em crônicas publicadas em jornais, reunidas em livro editado em 2003, quando faria cem anos. Aliás, não chegou aos cem anos contrariado, pois tinha toda a disposição para continuar vivendo. Era olhar para ele para se perceber que não tinha a menor intenção de morrer.
Mas, além de casos que viraram livro, nos deixou várias historietas que viveu ou inventou – ou que nós, os filhos, inventamos para contar a respeito dele. Era, como se vê, uma criatura ficcional.
Uma delas.
Ele era devoto de uma miraculosa fórmula que levava o nome de loção Pindorama, que eu imaginava já extinta, mas que o Google me informa que ainda circula por aí. Pois ele besuntava os cabelos com aquela loção e, quando eu e meu irmão Orlando tirávamos sarro dele, dizendo que pintava os cabelos, ele nos repreendia:
- Não pinto os cabelos. Essa loção não é tintura. Ela faz com que os cabelos não embranqueçam.
Ao falecer, tendo passado alguns dias no hospital sem poder aplicar a loção milagrosa, meu irmão notou que seus cabelos branqueavam. Alguém diria que isso desmentia suas teorias sobre a loção, mas creio que foi um último recado que nos deixou. Talvez, fingindo de morto, nos dissesse:
- Estão vendo? Sem loção, os cabelos ficam brancos.
O fato é que meu irmão mais velho, Cid, fez durante muito tempo uso da mesma loção, com a qual ostentava os cabelos negros do pai. Mas um dia ele cansou de usar com aquela gororoba e a abandonou. Hoje ostenta uma bela cabeça branca. Só isso impede que imaginemos que seja nosso pai redivivo. É a cópia.
Segundo uma lenda familiar, meu pai conservou vida afora a fama de namorador incansável. Em Lajes morou numa casa que ficava ao lado da residência de uma distinta senhora local com quem começou um caso. Eram casas próximas, com sótão, de tal modo que as duas janelas superiores davam de frente uma para a outra. Para escapar à vigilância de vizinhos, ele providenciou uma taboa e, estando o marido da distinta senhora em viagem, colocava a taboa de uma janela a outra e a atravessava qual malabarista no meio da noite para só voltar depois de mais uma batalha amorosa gloriosamente vencida.
Noutra ocasião, bateram à porta de sua casa, pedindo socorro. Ele abriu a porta e deu com um homem ferido a bala, que disse fugir de um marido traído.
- Vão me matar, disse o homem. Por favor, me salve!
Meu pai depositou o desconhecido debaixo da cama. Uma hora depois, um grupo armado chegou em busca do don Juan. Meu pai abriu a porta bocejando e, ao ouvir que procuravam  um fugitivo desavergonhado, reclamou ter sido acordado por conta de uma bobagem. E enxotou a tropa de vingadores.
Esse don Juan fujão era um espanhol chamado André Martinez, que se tornou um grande amigo de meu pai e, de certa forma, seu devedor e espelho. Afinal, praticavam o mesmo esporte.
Anos depois, André Martinez virou meu padrinho de crisma, uma coisa tão antiga quanto a loção Pindorama.




quinta-feira, 22 de setembro de 2016

O Trem Itabirano ronca pau na Flip, Flap, Flop, Flup...




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Vira e mexe tenho postado aqui alguma nota a respeito do jornal O Trem Itabirano, editado na mítica Itabira do poeta Carlos – pátria amada de todos nós. Não faço isso com mais frequência para não parecer aporrinhação ou assédio de fanzoca. Editado pelo jornalista Marcos Caldeira Mendonça, o jornal é daqueles que ronca o pau com acerto e galhardia.
Mas nesse número de setembro (é o 132) do jornal há uma matéria que não posso deixar passar. Trata-se de mais um texto desabusado do Fernando Jorge, escritor e jornalista conhecido, que dessa vez desanca uma das maiores picaretagens “culturais” do Brasil, a tal Flip, que o Fernando Jorge chama de Febeapá II, Festival de Besteira que Assola Paraty, homenageando o saudoso Stanislaw Ponte Preta.
Os leitores talvez se assustem, pois o jornalismo brasileiro corrente – sempre acorrentado a alguma coisa... – vive tecendo loas a eventos “culturais”, anunciando que livros em feiras formam novos leitores (ora, ora, o número de leitores de livros no Brasil despenca ano a ano), além de espetáculos explícitos de puxa-saquismo de editoras patrocinadoras, de jornalistas “culturais” que passam por críticos literários, de “escritores” e “escritoras” mais ou menos histéricos que dão pequenos shows a céu aberto etc. Toda essa gente, muito topetuda e oportunista coloca a Flip nas nuvens de olho num possível convite para a feira seguinte. O mundo literário é movido a benesses, quitutes e balangandãs, como se sabe.
Só para aperitivo. Fernando Jorge brinda assim algumas das estrelas da Flip. “Kenneth Maxwell, por exemplo, vomitou asneiras” sobre a independência do Brasil. Já “o insuportável ianque Benjamin Moser, autor de uma indigesta biografia de Clarice Lispector” deveria ter seu livro vendido como sonífero. Como Fernando Jorge escreveu um livro sobre Santos Dumont, não deixou passar incólume a patetice de atribuir ao inventor a homossexualidade. Nada disso, diz Fernando Jorge: e arrola as várias beldades que foram objeto da paixão de Santos Dumont, que não sentia tesão apenas por voar.
Sugiro que os prezados leitores desse blog leiam O Trem Itabirano deste mês, em especial a matéria sobre a tal Flip. Se não lerem O Trem, ficarão imaginando que os jornalistas e jornaleiros que hoje “divulgam cultura” no Brasil são moços e moças sabidos e bem informados que passam notícias honestas.
Mas poderão ler também uma matéria sobre Jaguar, outra sobre Drummond, outra sobre Guimarães Rosa, além de várias matérias e notas apetitosas. Basta escreverem para o endereço otremitabirano@yahoo.com.br e receberão a edição digital do jornal em seu computador. O Trem Itabirano chega rente feito pão quente.
Trata-se de uma diversão única, tal como sempre foi viajar de trem.




terça-feira, 6 de setembro de 2016

Os caminhantes




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O homem era gordo e desajeitado. Displicente, talvez, esquecido de si mesmo. Caminhava oscilando, braços largados, a cabeça perdida nas alturas a observar os pássaros, as nuvens, as árvores. Não era nem simpático nem antipático – era ele mesmo. Dava a impressão de solitário, de ser um tanto triste, mas nem assim parecia sofrer. Caminhava, apenas. Todos os dias, regularmente, exceto nos dias de chuva. No mais, fizesse frio ou calor, houvesse vento ou nuvens no céu, lá estava ele caminhando.
Como acontece entre caminhantes, os que passavam por ele, além de notarem seu porte deselegante, flagravam um ar de simpatia em seu rosto. E, como é praxe entre os que caminham, todos se cumprimentavam, distribuíam bons dias com uma oscilação de cabeça, não raro com um gesto de mão.
Assim se relacionam os caminhantes. Ninguém sabe quem é o outro, qual o seu nome, o que faz de sua vida. Mas todos sabem que caminham. Isso cria uma simpatia entre eles. Uns se cumprimentam de modo mais caloroso, outros apenas resmungam seu bom dia e seguem em frente. Estão no mesmo barco, é como se sentem. O fato é que sabem uns dos outros. Se aparece um novato no pedaço, logo percebem. É quando lhe ensinam, com alguma insistência, que o ato de dar bom dia é essencial à convivência naquele caminho. Os que entendem o espírito da coisa logo percebem como agir. Quem não entende, não tem conserto e logo abandonará o caminho, andando por outras plagas ou permanecendo jogado num sofá. Falta-lhe o espírito do caminhante. Nada a fazer.
Mas como não notar aquele homem que, gordo e desajeitado, oscilava ao caminhar e tinha um ar simpático no rosto moreno? Todos sabiam dele e foi por isso que o alarme soou quando ele sumiu por alguns dias.
De início houve apenas um espanto, mas, passada uma semana, os caminhantes começaram a se reunir, mesmo que se conhecessem apenas de bons dias, para saber o que se passara com o simpático homem gordo.
- Será que aconteceu algo com ele?
- Ando nessa trilha há três anos e ele não faltou um só dia.
- Algo aconteceu. Será que tinha alguma doença?
Um lembrou:
- Ele tossia. Não muito, mas tossia. Ouvi uma vez.
- Será que fumava?
- Pode ser.
- Pois é. Sendo fumante, com aquela gordura, já sessentão... Pode ser que...
Ficaram quietos de repente e se despediram com o compromisso de avisar caso soubessem de alguma novidade do talvez triste homem gordo. Passou-se outra semana e nada do homem aparecer.
- O que vamos fazer? Alguém sabe quem era, onde morava?
Ninguém sabia. Nem como se chamava. Partiram a investigar. Um dia alguém o vira entrando num bar, foram até lá. Explicaram: um homem gordo, balançava de lado, cara simpática. Era triste, acrescentou alguém. O dono do bar deu uma dica:
- Só se for o seu... seu... não sei o nome dele. Mora na próxima rua, a segunda casa à direita. Um dia passei por lá e ele estava na janela.
Foram em grupo ao endereço.  Quando viraram a esquina, lá estava o homem gordo regando umas plantinhas junto ao muro da casa. Desajeitado como sempre, ele oscilava e espalhava água sobre as plantas e sobre o muro.
Eles se aproximaram e o homem gordo levou um susto ao reconhecê-los.
- Bom dia! – disseram eles, quase em uníssono.
Baixou um constrangimento. Dizer o quê? Perguntar se havia morrido? Se fora parar num hospital? Tivera um AVC? Ninguém se decidia.
Até que um deles, um baixinho, se aventurou:
- Você não tem aparecido. Ficamos preocupados. Algum problema?
O homem largou o regador em cima do muro e fez um gesto pedindo que todos se aproximassem. E confidenciou, em voz baixa:
- Arrumei uma namorada.
Seu rosto brilhou e todos suspiraram aliviados. Foi quando surgiu na porta da casa uma sorridente jovem senhora de cabelos grisalhos, magra e pequenina, que fez um sinal enigmático que, segundo o gordo, significava que o café estava pronto.
Daquele dia em diante a turma dos caminhantes proibiu especulações pessimistas caso alguém sumisse do caminho. Quem sabe o sujeito fora à praia, disse um. Ou a Paris, disse outro. Ganhou na loto, emendou um terceiro. Enfim, destinos prazerosos. Afinal, eram caminhantes e a fila precisava andar.
Sem sobressaltos.