sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

A Bolha Assassina de Bolsonaro

 





Escrevo nesse 31 de dezembro de 2020, uma quinta-feira ensolarada.

Confesso que fico pensando se não teria coisa melhor a fazer do que batalhar com os fantasmas que ameaçam a vida e a paciência dos brasileiros.

Mas vamos lá. Há que vencer o tédio.

Tais fantasmas se resumem a duas assombrações. De um lado o covid-19, que assombra não apenas o Brasil mas a todos os habitantes do planeta, que se veem indefesos nessa luta desigual.

Já o outro fantasma a nos assombrar é originalidade brasileira, prata da casa, gestada nas casernas e com dinheiro público: o Jair e seus delírios em praça pública, lutando contra evidências médicas, contra estudos de institutos internacionais, negando tudo que possa lembrar cultura e civilização. Além, é claro, de disparar contra qualquer sinal de vida inteligente e democrática que nos reste.

Mas vejamos o que se refere ao covid-19.

Na década de 1950 o cinema norte-americano assombrou o mundo com filmes em que havia, sempre, um monstro imenso a espalhar malvadeza e morte pelo planeta terra. Nesse caldo foram gestados os super-heróis.

O mundo saía da segunda grande guerra e era preciso exorcizar os fantasmas que habitavam as cabeças assustadas dos terráqueos. Assim, muitas dessas ameaças, vinham de outros mundos, outros planetas, e eram impiedosas: dizimavam a vida terrestre e se mostravam invencíveis.

Um desses filmes, de 1958, foi A Bolha Assassina.

Foi refilmado em 1988, mas essa duplicata não vale nada. A de 1958 vale não como cinema, mas como registro de um clima social-psicótico.

Com recursos que hoje nos parecem risíveis, a tal Bolha Assassina circulava a rolar pelo mundo alimentando-se de seres humanos desprevenidos, dos quais se aproximava sorrateira e os fritava e engolia com prazer sádico.  Esses, aliás, só faziam correr, pois eram inúteis suas metralhadoras e explosivos.

A Bolha se recuperava de todos os ataques e ia em frente, fritando saborosos seres humanos com um apetite de anteontem.

O que fazer? Como se livraram dela? Eis o que já não lembro. Ainda não tive tempo de rever o filme. Ademais, mesmo que soubesse não o revelaria aqui para não estragar a experiência dos leitores, caso se interessem pelo tema.

Essa Bolha Assassina é o covic-19. É quase um extraterrestre, é traiçoeiro e sorrateiro e mata sem piedade, embora o Jair tenha desprezado o vírus como uma gripezinha sem importância.

Diante dela, temos pouco a fazer, senão correr como os terráqueos da década de1950 – no caso atual, nos trancafiamos dentro de casa como último refúgio esperando que os cientistas descubram as vacinas que nos librem desse mal.

Mas o segundo encontro de Jair com seu destino, são suas agressões cada vez mais evidentes aos alicerces de um regime democrático. Não podemos imaginar que Jair haja de forma aleatória. Não. Ele sabe o que agride e onde bate. Basta olharmos seus primeiros delírios, logo após a posse, para encontrarmos o espírito ditatorial e reacionário do Jair. Desde as agressões – que alguns imaginavam tolices de juventude – que foram desferidas contra o STF e o Congresso, lá está, inclusive com presença física, o indefectível fascista Bolsonaro.

Em seguida os manifestantes pro Jair, reuniram meia dúzia de irresponsáveis (pagos?) para desfilar frases de ódio às diferenças, à democracia, aos poderes constituídos, até que o presidente do STF os chamou às falas e eles se recolheram à obscuridade de onde vieram, tal como a Bolha Assassina, ainda que com menos poder do que a tal Bolha.

Jair assumiu então o papel de agressor imaginando que ninguém revidaria ao presidente. E passou a desferir, desde aquele cercadinho do palácio do Planalto, frases boladas por sua equipe, e que permitiam a que ele desfiasse supostas denúncias contra os inimigos de seus cinquenta e tanto milhões de votos.

Ora, o suposto do Jair é de que  é preciso denunciar os poderes legislativo e judiciário, mais as entidades de classe, a liberdade de imprensa etc. que são o que emperra a ação do executivo para realizar uma verdadeira revolução no Brasil. O excesso de liberdade da imprensa, por exemplo. O espírito “esquerdista” dos professores. O destemor de intelectuais que contestam sua sapiência de eleito. Esse é o ideal fascista do Jair, desequilibrar todos os poderes, mirar todas as forças de resistência existente na população, para se investir como Führer da pátria.

No entanto, lá onde Jair conseguiu – demitindo ministros, por exemplo - impor suas vontades e suas “ideias” as coisas não andam. A inflação ronda, o apoio da população diminui, o desemprego cresce e resiste. A corrupção se espalha, a mesma que ele disse que acabou. Ora, não só não desapareceu, como está, sorrateira tal como a Bolha Assassina, rolando na direção dos pés do presidente, dos pés de seus filhos, de sua mulher, dos amigos mais chegados, de milicianos antes intocáveis.

Mas Jair já não pode recuar. Por isso avança sobre o Legislativo, oferece cargos e benesses. Quer eleger a presidência dessas duas casas. O poder direto exercido pelo grande líder fascista é outro dos princípios do Jair. Atacado o Legislativo, certamente avançará rumo ao Judiciário, impondo nomes e currículos suspeitos etc.

Eis o Brasil. Eis a Bolha Assassina.

Ou criamos uma frente de combate efetivo aos avanços das tropas fascistas do Jair, ou ele seguirá nos engolindo um a um e soltando, ao final, como a Bolha Assassina, um arroto de desprezo.

 

 

 

 

      


sexta-feira, 13 de novembro de 2020

O Jair Bolsonaro pirou de vez

 




Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?

 

As tiradas grosseiras do Jair me fazem lembrar uma máxima de Eça de Queiroz, o notável escritor português, segundo a qual “políticos e fraldas devem ser trocados de tempos em tempos e pelo mesmo motivo”.

Acertou na mosca, o gajo.

É verdade que, no caso dos problemas a resolver, a república brasileira tem para todos os gostos. O Guedes lamenta não ter vendido nada na sua quitanda barateira de estatais. Nas ruas, o povo reclama que o arroz está caro, que a inflação ataca à sorrelfa, corroendo salários. Em certos casos falta luz aqui, água acolá, sendo que milicianos tomam conta de mais de metade de grandes cidades.

Mas quero falar de um problema que é um problemão.

É um caso triste e chato, reconheço, mas que precisa se enfrentado.

O dito senhor Jair está, sabemos pelas redes sociais, no limite do estresse.

O pobre homem está a cada dia desempenhando papéis os mais ridículos e tendo ideias, as mais estúpidas. No início, tropeçava a cada três palavras, agora há um desencontro sem conserto de palavras e frases sem sentido que resultam em disparates. A sua tática conhecida de inventar uma polêmica provocativa e inútil para desviar a questão dos problemas reais já não está funcionando. O pobre coitado está perdido.

Não acerta uma. Fez alarde com a delirante ideia de colocar uma arma na mão de cada brasileiro, talvez com o intuito de que se matassem entre si. A ideia não andou e muitos brasileiros ainda continuam vivos e operantes. Mas Jair não desiste.

Anunciou que formaria um super ministério. Não conseguiu. De super, o ministério não tinha nada além de militares numa quantidade assombrosa de condecorações e medalhas. Foram comandar a saúde, a educação, os transportes, sendo que a economia ficaria com um super Guedes, que acabou se revelando não um posto Ipiranga de soluções, mas um poço sem fundo de equívocos embaraçosos. Pequenino de talhe e de conexões neurais, acumula trapalhadas, uma delas a ressureição da CPMF, de triste memória, e que acabou, como todas as ideias do desastrado Jair, falecendo precocemente.

Colocou na Educação um tipo sem qualquer educação. Na Cultura outro sem uma gota de verniz cultural. Trocou o infeliz por uma por uma atriz, o que resultou no maior fiasco, com direito a pum de palhaço. Jair mandou todos embora e colocou no lugar uma tropa equivalente.

E lá vai Jair nos seus descaminhos. O que acabou lhe rendendo uma enorme descoberta: como não tem qualquer competência ou talento para governar um país, ele descobriu um novo método: a cada dia inventa uma espécie de pílula provocativa e a entrega ao povo para seu deleite.

E tudo acaba na desconversa de sempre.

Mas acho que todos esses problemas são pequenos diante do maior deles. Em resumo, o problema central e definitivo é esse: o que o Brasil vai fazer com o Jair?

Os brasileiros, mais cedo ou mais tarde, terão que decidir o que fazer com esse senhor que está no meio da avenida atrapalhando o trânsito.

Essa é a questão: o que se pode e deve fazer com o Jair?

No momento o pobre homem está cada vez mais perdido, como sempre afastando auxiliares pelos quais era capaz de jurar a maior fidelidade.

Brigou com velhos companheiros que chegaram a ser ministros e confidentes. Deu a todos o destino que os tiranos costumam dar àqueles que subiram ao poder com eles, mas que, por isso ou aquilo, resolveram experimentar autonomia de voo. Receberam o troco: foram fritados em praça pública, viraram tipos desprezíveis. Um a um eles foram caindo. Permanecem nos cargos alguns que têm a virtude de não discordar de nada e obedecer sempre.

Agora, para completar a lista tenebrosa dos infortúnios do Jair, o seu suposto amigo Donald Trump, no qual Jair apostava todas as fichas, foi derrotado nas eleições presidenciais e, embora esperneie, vai mesmo sair da Casa Branca ou ser retirado de lá à força.

Ou seja, Jair está abandonado. Perdeu seu padrinho e mestre, aquele a quem Jair declamou um ridículo “I love you”. A numerosa comitiva que o acompanhava no puxa-saquismo coletivo foi abatida pela tal gripinha cada vez mais temível.

E, se o Jair não pegou a covid-19 nessa ocasião, pegou logo a seguir e teve que se render à gripinha, contra a qual lutou, pelo que se sabe, não com cloroquina, mas com armas mais poderosas. Assim, Jair já não sai ao puxadinho residencial, onde era aclamado por meia dúzia de gatos pingados e mal pagos. Ali deu os melhores de seus shows respondendo na tampa a qualquer provocação.

Mas não vamos esquecer: o que o país fará do Jair?

Que destino dar ao Jair?

Realmente não sei. Em 2022 teremos a chance de lhe dar o destino que os norte-americanos deram a seu padrinho Trump. Conseguiremos esperar? Acho que sim, já suportamos coisas piores.

Eleito com 57.797.847 de votos, pode ser que fique por aí enchendo a nossa paciência com novos falsos problemas que servem para camuflar problemas reais, arte na qual os políticos brasileiros são mestres.

Mas há dois dias o Jair se superou: diante de um comentário de Jo Baiden sobre a Amazônia, ameaçou os EUA com o disparo, não apenas da artilharia de sua língua inquieta e venenosa, mas da sua “pólvora”. Fez uma declaração de guerra, eis aí. É o limite do ridículo. Lembrei imediatamente do notável filme de Jack Arnold, no qual Peter Sellers, como sempre, dá um show – O rato que ruge (1959).

Ou seja, Jair (o Rato) quer agora marcar um duelo com os marines e suas armas intercontinentais.

Vejam o filme. É ótimo.


terça-feira, 16 de junho de 2020

O louco sempre tem razão

 




Gosto muito de um autor inglês, Gilbert Keith Chesterton, que, sendo também um exímio humorista, era não apenas um grande escritor como um escritor grande. De físico volumoso e avantajado, se movia com a agilidade de um jovem potro, sobretudo quando se tratava de esgrimir com ideias.

Não é sem motivo que Chesterton tenha passado despercebido pelos quatro ou cinco leitores que restam no Brasil. Ocorre que, além de gordo, ele era confessadamente um conservador, um pensador católico – se autodenominava um católico ortodoxo – fiel às concepções filosóficas de Santo Thomas de Aquino, seu santo de devoção, que, aliás, era também um tipo muito gordo, de barriga imensa, tanto que em sua mesa de trabalho foi recortada uma meia lua na qual ele se inseria pacientemente para poder ler e escrever – caso contrário não alcançaria nem os seus livros nem seus lápis. É o que consta a respeito desse pensador em cuja obra Chesterton busca se ancorar.

Cabe aqui um parêntesis.

Certa vez estava eu escolhendo livros numa livraria (claro, me refiro a um tempo em que havia livrarias, ou seja, um lugar onde era possível pesquisar assuntos, livros e autores) quando chegou um amigo, professor de filosofia, que de imediato veio bisbilhotar um dos livros escolhidos por mim.

- Ah, lendo autores da direita!

Não digo o nome do professor porque é um grande amigo, embora vítima de um equívoco político que já vicejava robusto no Brasil de todos os equívocos.  Militantes acham que devem ler só livros com os quais concordam – a esquerda com seus prediletos e a direita idem. Pois eu acho o contrário, com o que já entro no motivo pelo qual comecei citando Chesterton. Ao amigo, respondi assim:

- Como no futebol, é preciso saber o que pensam os adversários.

Pois Chesterton está entre os meus adversários que mais admiro. É um homem culto, inteligente, intelectualmente honesto – e que tem todo o direito de discordar de mim, pobre mortal. Por isso fico estarrecido quando vejo políticos e militantes esbravejando xingamentos uns contra os outros, muitas vezes sem ter a menor ideia do que o outro está dizendo. Bastam os chavões, as palavras de ordem, os berros histéricos. Nesse circo dos horrores, as divisões são claras: de um lado está a verdade, do outro não há verdade alguma.

Tento me explicar melhor. Um dos jornalistas que eu mais admirei foi Paulo Francis, o feroz polemista. Seu texto era um ringue, sobravam diretos de direita e de esquerda. No entanto, eu discordava de 80% do que o Francis escrevia. Mas ele era brilhante e isso me bastava. Era com o que eu arejava minhas próprias ideias.

Agora vamos ao Chesterton. Grande criador de frases fulminantes que não eram jogos gratuitos de palavras, mas estocadas que sintetizavam longas reflexões, com o que ele combatia os medíocres lugares comuns que circulam nos debates políticos e filosóficos.

Um desses lugares comuns reza que o louco é alguém que perdeu a razão. Diante da obviedade, Chesterton tragava prazerosamente seu inseparável charuto e fulminava:

- Não. O louco é alguém que perdeu tudo, exceto a razão.

Como não se pensou nisso antes? O louco sempre tem razão. O louco sempre tem na ponta da língua a solução para todos os problemas do mundo. Seja para acusar os judeus de todas as desgraças que nos abatem, como para apontar os negros como raça inferior. O louco, com duas pequenas ideias coletadas em alguma apostila ou manual, acusa genericamente a todos que não pensam como ele. É simples. Ele está certo e o resto do mundo está errado. Axioma primeiro da cloroquina.

Aliás, é curioso. O socialismo, tal como idealizado no século XIX, fracassou, a não ser que achemos que China, Rússia, Venezuela, Cuba, sejam modelos de países socialistas. Portanto, a direita no Brasil combate um mero fantasma, que tem como utilidade criar a paranoia coletiva do medo do comunismo. Da mesma forma, a esquerda, viciada em suas razões, perdeu o rumo e está perplexa. Desde que uma de suas estrelas sapateou num palco declarando que odiava a classe média, ela calou-se e, pelo que parece, não reflete mais.

Direita e esquerda, que estupidificam o debate de ideias no Brasil, são nossos loucos preferenciais. Estão cheias de razão, tudo sabem e tudo explicam.

Diante do que Chesterton soltaria uma baforada irônica de seu charuto e diria:

- Estão vendo? Perderam tudo exceto a razão. Estão cobertos de razão.

Portanto, o louco não perdeu a razão. Ele perdeu a solidariedade, o convívio fraterno, o humor, o respeito ao outro, a generosidade, a empatia, o reconhecimento e a aceitação do outro, com suas igualdades e diferenças.

Enfim, o louco já não sabe o que é amar.

 

 

 

 


sábado, 23 de maio de 2020

Sabe o apelido de caserna do Bolsonaro?








Confesso que minha vontade seria continuar espichado no sofá lendo esse delicioso livro de Voltaire, O filósofo ignorante. Enquanto isso a chuva, nessa sexta-feira chuvinhenta, continuaria caindo lá fora, tricotando o silêncio escuro, filtrado pela luz anêmica de um poste.
Ocorre que escrever implica, nesses tristes dias que correm, em falar de figuras repugnantes que dominam a cena política brasileira. Essas inutilidades abjetas seriam ignoradas por nós, exceto se tropeçássemos neles em alguma ruela escura.
Bolsonaro, afinal, continua o mesmo - o que não é muita coisa e nem deve ser difícil para ele. Esbraveja, escoiceia, rosna, resmunga. É o campeão de grosserias e de perdigotos por minutos jogados sobre a mesa de reunião. Enfim, corresponde ao apelido que recebeu quando ainda era apenas um soldado a mais no quartel: Cavalão.
Eis aqui algo de interessante nesse deserto de ideias em que se transformou o Brasil. Os apelidos.
Ninguém sabe ao certo quem aplicou pela primeira vez o apelido em tal pessoa. Podem até circular anedotas a respeito, mas a verdade é que o apelido é obra coletiva, não tem autor nem assinatura. Mesmo quando existe um duvidoso autor a obra é coletiva, pois é preciso que o apelido seja consagrado coletivamente. E, podem observar, o apelido já nasce burilado, perfeito, acabado, pronto para o consumo por parte da chacota dos grupos onde se originou.
E eis aí o que eu quis dizer e que me interessa. Não a chacota, mas o apelido em si. São raros os que não são perfeitos. Eles caem bem como uma luva ou uma caricatura. Tanto que todos, ao saberem do apelido, se surpreendem: como não pensei nisso antes? Estava na cara, quer dizer, na caricatura.
Acontece que a caricatura, ao contrário da maioria dos retratos, é a verdadeira cara do retratado, a sua alma gráfica, a quinta essência de seu corpo e alma, pois tanto quanto o apelido fisga exatamente isso: a verdade do sujeito. Vale observar que, com o tempo, os caricaturados se tornam cada vez mais parecidos com as suas caricaturas. O exemplo no anedotário da história da pintura é o retrato de Gertrud Stein feito por Pablo Picasso. Durante semanas ele sofreu, fazendo e refazendo sem sucesso o retrato em intermináveis tarde de trabalho. Até que certo dia ele colocou algumas pinceladas aqui e ali e decretou: está pronto.
Gertrud saiu da poltrona onde estivera como modelo e veio olhar o quadro. Espiou daqui e dali, aproximou-se, afastou-se e, mulher decidida como sempre, não deixou por menos:
- Mas não parece comigo, Pablo.
Picasso observou:
- Não se preocupe. Com o tempo você vai se parecer com o retrato.
Eis aí. E foi o que se deu. Com o tempo Gertrud Stein se tornou parecidíssima com o retrato, que ela guardou com muitos cuidados, saboreando, como se fossem para ela, os aplausos que o quadro recebia.
No Brasil, Delfim Neto, esse ministro eterno da economia do país, acertadamente se envaidece e ama ser caricaturado. E, é fácil verificar, ele foi, com o tempo, se tornando cada vez mais parecido com suas caricaturas, que coleciona.
Pois o mesmo que se dá com os apelidos. Quando acertados eles grudam no personagem apelidado e não o largam mais. Apelido bom é para sempre.
A razão, como já disse, é simples: o apelido é a verdade, o indivíduo sem persona que o encubra, sem máscara que o disfarce.  Dele ninguém escapa.
No caso do Jair, segundo seus colegas de quartel, o apelido que nele se eternizou foi Cavalão. É a sua verdade. Cavalão. Seu ego verdadeiro e indelével. Aquilo que nenhuma maquiagem poderá disfarçar. Pode levar facada, ficar décadas incógnito numa cadeirinha de deputado estadual no Rio de Janeiro, ser eleito presidente, que o sujeito, quando bem apelidado, não se livra do próprio.
Continuará, de alma e de corpo, incorporando o apelido, que passa a ser o ego mais indelével de sua personalidade.
Pois tudo isso, nesta sexta feira que termina pluvimedonha, como diria Drummond, súbito percebo o sentido da pornográfica reunião de Bolsonaro e seus asseclas numa sala obscura do Alvorada. Ele está dando vazão a seu apelido de caserna, fisgando seguidores e cúmplices, espalhando-se país afora tal como o novo coronavírus.





domingo, 17 de maio de 2020

quarta-feira, 25 de março de 2020

O Alienista rumo ao abismo





Região News - Jornal americano coloca Bolsonaro com Hitler em charge


  
Todo brasileiro deveria, antes de completar vinte anos, comprovar que leu a novela de Machado de Assis O Alienista, sem o que não poderia gozar de seus direitos de cidadão. Trata-se de obra excepcional e definitiva, o que é atestado, inclusive, pelas várias encarnações que teve na vida política brasileira.
O caso mais notório foi o de Delfim Moreira, que ficou no cargo de novembro de 1918 a junho de 1919. No entanto, comparado com os malucos que o antecederam e o sucederam, era uma espécie de maluco manso que súbito entrava num mundo paralelo e lá ficava a delirar inteiramente desligado do cargo para o qual fora eleito. Enquanto durasse o seu devaneio, ele era substituído por Afrânio de Melo Franco, pai de Afonso Arinos, que cuidava de papeladas, cerimônias, decretos, reuniões etc.
O Alienista é o que se pode chamar de obra perfeita. Escrevi sobre essa novela um ensaio que foi publicado como introdução à edição da Nova Fronteira, Rio, 2017. Obra-prima notável, é herdeira da tradição do romance picaresco inaugurada por A vida de Lazarilho de Tormes, (que traduzi para a L&PM) e parente da obra do mestre russo Gogol. Conta a história de Simão Bacamarte, que se imagina a grande encarnação do sábio que tem por destino dirigir os passos do povo, essa massa ignara.
Ele é possuído pela ideia fixa de separar razão e ciência, mas na verdade o que ele tem como obsessão é o poder, no caso, o da ciência e dos governantes. Com maestria, Machado não diz muito a respeito de seu personagem, não dá opiniões, apenas foca sua atenção de ficcionista em alguns traços do personagem, sobretudo seus olhos.
Os olhos de Simão Bacamarte faíscam, querem saltar de seu rosto feito dardos e ferir aqueles que julga doidos, espécie que ele pretende escorraçar de Itaguaí, onde pretende implantar seu projeto de governo.
Essa é a primeira aproximação possível entre Bolsonaro e Bacamarte, o olhar. A loucura salta de seus olhos, febris, delirantes, que enxerga no mundo o que bem entende. Vem daí o mergulho em sua obsessão seguinte: a distinção nítida e definitiva entre razão e loucura. A mesma separação com que opera Bolsonaro, utilizando-se dos termos direita e esquerda. A irrealidade do projeto de Bacamarte é a mesma que faz com que Bolsonaro lute, com pleno 2020, com fantasmas de outro século.
O aspecto destrutivo de Bolsonaro fica evidente no seu percurso político. Durante cinco mandatos de deputado foi mera curiosidade regional. Chegou à presidência da república de modo relâmpago, tal como um doido que o antecedeu, Collor. Do dia para a noite, se viu no Alvorada.
Sua concepção política, no entanto, que em Collor era a de um capitão do mato alagoano, é nele o de um tipo que foi forjado na caserna, um fruto de uma mentalidade arcaica que viceja no exército brasileiro. Nesse tipo se inclui o nacionalismo caricato, a concepção centralizadora do poder, o culto do homem providencial, o que no Brasil se junta ao mito de Dom Sebastião, o morto vivo que voltará da morte para salvar seu povo, origem de todas as concepções brasileiras totalitárias.
A isso se acrescenta uma mente vazia. Faz parte do folclore político brasileiro um grupo de anedotas que retratam o presidente Dutra como um homem muito burro. Penso não ser bem assim, mas Bolsonaro sem dúvidas é de uma incultura insuperável.
Veja-se a sua retórica. Antes de mais nada, seja qual for a plateia à qual se dirige, procede como um sargento dando ordens a um grupo de milicos. A voz é grossa, trovoada artificial que exige muito esforço, e seu tom é alto. Acho que é a mais perfeita expressão de sua inadequação ao cargo de presidente. É claro que Bolsonaro, precisaria aprender a diferença entre comandar uma nação democrática e uma tropa de subalternos. O berro não é boa retórica. Mas, egresso da caserna e sem ter buscado em outra parte luzes que pudessem iluminá-lo, Bolsonaro não consegue estabelecer uma distinção entre essas duas coisas.
Embora se diga democrata para efeitos eleitorais, sua visão de mundo, dos costumes, de religião, é atrasada e tacanha. Das mulheres, é sabido, tem uma visão de troglodita das cavernas.  O que imagina ser o papel de sua “família”, corresponde a um modelo mafioso que constrangeria Al Capone. No entanto, precisa se fazer de democrata, pois grupos mais flexíveis do exército não querem ver a corporação metida em nova aventura da qual sairá mais chamuscada do que dos idos de 1960-1980. Além disso, ele sabe que sua margem de controle do seu eleitorado é baixa. Tal como Collor uma boa percentagem dos que o elegeram não se sente obrigada a nenhuma fidelidade e precisam ser agradados continuamente. Daí que vocifere como Hitler nos eventos com seus iguais e busque (sem conseguir) ser malandro à maneira de Getúlio em outros espaços. Também não consegue.
Por isso sua relação com seu próprio partido, que fundou e se encarregou de esfacelar, é a pior possível. Um partido, seguindo a tradição brasileira, é uma limitação, menos ideológica do que de favores, acertos, acomodações etc. Por isso, Bolsonaro esfacelou o PSL pois se imagina uma fera indomável e sem freios. Mas teve que engolir o seu vice. Teve que engolir outras figuras mais ou menos “democráticas” que tratou de defenestrar assim que tomou posse. Fritou uma série deles, demitiu grosseiramente outros, foi o campeão em nomear e demitir a partir de escolhas fulminantes e incompreensíveis. A falta de nomes de categoria aceitável – que se afastam dele ou às quais não consegue atrair - nomeou ministros ignorantes (Educação), inoperantes (são tantos), oportunistas (Funarte e Secretaria da Cultura). Além disso, já sente um desconforto incontrolável com sua melhor indicação de ministro, o da saúde. Bolsonaro e seus filhos já não suportam um ministro que parece competente, que comporta-se com educação, falando com correção gramatical, que tem uma cultura, não só médica, respeitável etc. Luiz Henrique Mandetta irrita ao clã e seu chefão, mas é o homem marcado para morrer, sobretudo pelos acontecimentos de hoje, 25 de março.
Daí as contradições de atitudes, o abandono de partidários antes fiéis e elogiados (Bebiano), a defenestração de outros, com o que chegamos ao atual cenário constrangedor em que o ministro da Saúde diz uma coisa e Bolsonaro se coloca na TV, histérico, dizendo exatamente o contrário.
É a esquizofrenia do doidivanas. Dividiu seu partido, separou-se de amigos de velha data, dividiu seu ministério em fatias onde abriga um saco de gatos e se comporta como um timoneiro que leva a nave rumo ao desastre.