
O psiquiatra olhou para
ele, pigarreou, e pegou uma ficha. Pigarreou de novo e olhou significativamente
para o celular na mão dele. Ele se fez de desentendido.
- Bem, explicou o
psiquiatra, preciso preencher uma ficha com seus dados pessoais, algumas
informações gerais, antes de começarmos. Mas, me perdoe, seria melhor se o
senhor desligasse o celular.
Ele reagiu e segurou o celular
junto ao peito.
- Não posso.
- Aguarda alguma
ligação importante?
- Nunca se sabe,
doutor.
- É verdade, nunca se
sabe. Mas é preciso que desligue para podermos conversar...
- Esse é o problema.
O psiquiatra riu. Era
desses psiquiatras que riem:
- Entendi. Não sabe
como desligar. Eu tive um celular que eu não sabia desligar. Um amigo me
ensinou como fazer – e estendeu o braço na sua direção: Quer que eu desligue?
Ele saltou da cadeira, segurando
o celular com as duas mãos. Gritou:
- Não!
Foi um não que exigia um
ponto de exclamação, tanto que ele pediu desculpas:
- Me desculpe, doutor.
Eu sei desligar.
- Então?
- Mas não posso, não
consigo.
- Nunca desliga?
- Não. Nem deixo de
olhar para ele.
- Por quê?
- Nunca se sabe...
- Entendo, fez o psiquiatra.
Ele voltou a ocupar a cadeira,
o celular na mão esquerda, a mão direita pronta para ajuda-lo na fuga caso o
médico ameaçasse arrancar o aparelho de sua mão.
- Calma. Calma. Então,
me explique umas coisas.
- Vou tentar.
- Vai ao banheiro com
ele?
- Sim.
- Ao chuveiro também?
Ele balançou a cabeça:
sim, embrulhado num saco plástico.
- Suponho que quando
almoça...
- Ele fica em cima da
mesa, mesmo nos restaurantes.
- E no cinema? – o psiquiatra
afinal achou que ia vencer.
- Não vou ao cinema há
uns dois anos.
- Por causa... – o
psiquiatra apontou cautelosamente: ...dele?
- Por causa dele.
- No teatro nem pensar?
- Nem pensar.
- Entendo. E quando
dirige?
- No bluetooth do carro.
- Ainda bem. E quando
dorme?
- Eu durmo, ele não. Fica
ao lado do travesseiro.
- E... – o psiquiatra
achou que chegara a uma pergunta infalível: ...quando faz sexo?
- Ele também faz.
- Também?
- Na mão esquerda.
- E funciona?
- Não. Esse é o
problema: minha namorada já não aceita. Quer colocá-lo na gaveta, debaixo da
cama pelo menos. Não consigo.
- Deixou de fazer sexo,
então?
Ele abaixou a cabeça,
triste:
- Deixei.
- Nunca vi disso, sussurrou
o psiquiatra.
- Nem eu, confessou
ele.
- Muito sério o seu
caso. Já não vai ao cinema, já não faz sexo. O celular sempre ligado.
- Isso mesmo doutor.
O psiquiatra respirou
fundo, passou a mão no rosto duas vezes.
- Confesso que...
- Também não sabe o que
fazer, doutor?
Foi quando os olhos do
psiquiatra brilharam:
- Acho que sei.
Pegou um bloco, uma
caneta e escreveu alguma coisa.
- Meu remédio, doutor?
- Não, não. Nada de
remédio.
O psiquiatra lhe
estendeu a folha que sacou do bloco:
- Esse é o meu
telefone. Ligue para mim.
- Quando, doutor?
- Agora.
- Agora?
- Agora.
O tratamento afinal
pode começar. Mas cinema, teatro e sexo, nem pensar.
Nessa vida já tão cheia de encruzilhadas, mais do que uma solução, um dilema: o celular.
ResponderExcluirNem se trata mais do simples tê-lo ou não tê-lo. (Mesmo aqueles que mais resistiram acabaram sucumbindo.) Trata-se do como usá-lo. Se é verdade que nunca se falou tanto com pessoas à distância, também é verdade que nunca se ouviu tanto silêncio entre pessoas na mesma sala, ou numa fila qualquer, ou ao redor de uma mesa.
Sua história é uma delícia! Cômica, irônica e com um desfecho surpreendente. Aliás, sem desfecho, como deve ser uma boa história: cada leitor que imagine o que ocorreu depois.
Diverti-me muito com a narrativa. Mal conseguia segurar o riso. E não creio ter sido a única... Muitos leitores devem ter-se lembrado de fatos hilários vividos com celulares à cabeceira...