Revisar textos é
tarefa inglória. Por mais neuróticos que sejam os revisores, sabemos de antemão
que algo escapará, algum descuido mais ou menos grave ficará numa página tantas
vezes vista e revista. Fernando Sabino falava disso numa crônica antiga,
lembrando um ditado que circula desde Gutenberg pelas oficinas gráficas: “o
diabo mora na tipografia”.
Desde que me meti a escrever
e editar livros, sou perseguido por uma sina particular. O livro pronto,
chegado da gráfica, é retirado do pacote. É um prazer insuperável. O cheiro de
livro recém-saído da gráfica só é comparável ao do pão recém-saído do forno.
Mas é quando entro em
pânico.
Sei que vou abrir
aquele livro exatamente numa página que contém um erro, não raro o único erro
de todo o livro. Numa editora que dirigi, os funcionários me traziam os livros
recém-editados com o coração aos pulos. Estavam convencidos de que eu abriria
numa página com algum erro de revisão. E não dava outra: lá estava a vírgula
fora do lugar, o ponto duplicado, o parêntesis que não foi fechado, o travessão
inesperado, o s no lugar de um z. A gafe brilha e ocupa todo o espaço da mancha
impressa, ri de nossos cuidados.
É um problema que
merece reflexão. Deve haver em algum lugar do cosmos uma conspiração das
letras, das máquinas, das palavras, quem sabe obra de algum espírito brincalhão
que se mete entre as páginas. Talvez circulem no mundo palavras em demasia,
livros em excesso, páginas redundantes. Os deuses da literatura nos castigam com
essas gafes para que não percamos a humildade.
Era 1980. Numa bienal
do livro minha atenção foi despertada por um sujeito que estava expondo
xilogravuras num corredor anexo. Fui bisbilhotar. Eram obras de um bom gravurista,
chamado Marcelo Soares, munido de chapéu de aba larga e boa lábia nordestina.
Conversamos e, lá pelas tantas, descobri o que me levara àquele lugar.
Misturada a outras gravuras,
encontrei uma intitulada “Lampião chutando o traseiro do Diabo.” Eis a razão
pela qual eu fora à Bienal, pensei. Lampião desferindo um potente chute na bunda
do Diabo me pareceu uma imagem perfeita para os dramas que enfrentamos ao
editar.
Comprei a gravura,
mandei emoldurá-la e ela está até hoje comigo, aqui na parede ao lado, como uma
espécie de santo protetor dos escritores, editores e revisores. Com esta
xilogravura por perto, me sinto mais tranquilo, mas, é claro, não livre de
erros. Quando eles acontecem, vou até a xilogravura e, como fazem devotos de outros
santos, discuto com Lampião, reclamando por ele não ter evitado esse tropeço.
Um homem tão poderoso, digo a ele, capaz de colocar em debandada os macacos da
Volante, como não me protegeu dessa ridícula vírgula fora do lugar?
Lampião nem me olha.
Limita-se a desferir novo chute na bunda do Diabo, pois sabe que todos, no
jornalismo, na literatura, na redação de um modesto ofício, vivemos aterrorizados
com a possibilidade de uma simples vírgula se transformar num holofote.
Nenhum comentário:
Postar um comentário