Confesso que minha
vontade seria continuar espichado no sofá lendo esse delicioso livro de Voltaire,
O filósofo ignorante. Enquanto isso a
chuva, nessa sexta-feira chuvinhenta, continuaria caindo lá fora, tricotando o
silêncio escuro, filtrado pela luz anêmica de um poste.
Ocorre que escrever implica,
nesses tristes dias que correm, em falar de figuras repugnantes que dominam a
cena política brasileira. Essas inutilidades abjetas seriam ignoradas por nós,
exceto se tropeçássemos neles em alguma ruela escura.
Bolsonaro, afinal,
continua o mesmo - o que não é muita coisa e nem deve ser difícil para ele.
Esbraveja, escoiceia, rosna, resmunga. É o campeão de grosserias e de
perdigotos por minutos jogados sobre a mesa de reunião. Enfim, corresponde ao
apelido que recebeu quando ainda era apenas um soldado a mais no quartel:
Cavalão.
Eis aqui algo de
interessante nesse deserto de ideias em que se transformou o Brasil. Os
apelidos.
Ninguém sabe ao certo
quem aplicou pela primeira vez o apelido em tal pessoa. Podem até circular
anedotas a respeito, mas a verdade é que o apelido é obra coletiva, não tem
autor nem assinatura. Mesmo quando existe um duvidoso autor a obra é coletiva,
pois é preciso que o apelido seja consagrado coletivamente. E, podem observar,
o apelido já nasce burilado, perfeito, acabado, pronto para o consumo por parte
da chacota dos grupos onde se originou.
E eis aí o que eu quis
dizer e que me interessa. Não a chacota, mas o apelido em si. São raros os que
não são perfeitos. Eles caem bem como uma luva ou uma caricatura. Tanto que
todos, ao saberem do apelido, se surpreendem: como não pensei nisso antes? Estava
na cara, quer dizer, na caricatura.
Acontece que a caricatura,
ao contrário da maioria dos retratos, é a verdadeira cara do retratado, a sua
alma gráfica, a quinta essência de seu corpo e alma, pois tanto quanto o
apelido fisga exatamente isso: a verdade do sujeito. Vale observar que, com o tempo,
os caricaturados se tornam cada vez mais parecidos com as suas caricaturas. O
exemplo no anedotário da história da pintura é o retrato de Gertrud Stein feito
por Pablo Picasso. Durante semanas ele sofreu, fazendo e refazendo sem sucesso o
retrato em intermináveis tarde de trabalho. Até que certo dia ele colocou
algumas pinceladas aqui e ali e decretou: está pronto.
Gertrud saiu da
poltrona onde estivera como modelo e veio olhar o quadro. Espiou daqui e dali,
aproximou-se, afastou-se e, mulher decidida como sempre, não deixou por menos:
- Mas não parece comigo,
Pablo.
Picasso observou:
- Não se preocupe. Com
o tempo você vai se parecer com o retrato.
Eis aí. E foi o que se
deu. Com o tempo Gertrud Stein se tornou parecidíssima com o retrato, que ela
guardou com muitos cuidados, saboreando, como se fossem para ela, os aplausos
que o quadro recebia.
No Brasil, Delfim Neto,
esse ministro eterno da economia do país, acertadamente se envaidece e ama ser
caricaturado. E, é fácil verificar, ele foi, com o tempo, se tornando cada vez
mais parecido com suas caricaturas, que coleciona.
Pois o mesmo que se dá
com os apelidos. Quando acertados eles grudam no personagem apelidado e não o
largam mais. Apelido bom é para sempre.
A razão, como já disse,
é simples: o apelido é a verdade, o indivíduo sem persona que o encubra, sem máscara
que o disfarce. Dele ninguém escapa.
No caso do Jair,
segundo seus colegas de quartel, o apelido que nele se eternizou foi Cavalão. É
a sua verdade. Cavalão. Seu ego verdadeiro e indelével. Aquilo que nenhuma
maquiagem poderá disfarçar. Pode levar facada, ficar décadas incógnito numa
cadeirinha de deputado estadual no Rio de Janeiro, ser eleito presidente, que o
sujeito, quando bem apelidado, não se livra do próprio.
Continuará, de alma e
de corpo, incorporando o apelido, que passa a ser o ego mais indelével de sua
personalidade.
Pois tudo isso, nesta
sexta feira que termina pluvimedonha, como diria Drummond, súbito percebo o sentido
da pornográfica reunião de Bolsonaro e seus asseclas numa sala obscura do
Alvorada. Ele está dando vazão a seu apelido de caserna, fisgando seguidores e
cúmplices, espalhando-se país afora tal como o novo coronavírus.
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