segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Quando menos se espera




Fuma outro cigarro. Com cuidado, buscando prolongar o tempo, sem pressa alguma. É preciso alongar os minutos, repete mentalmente, sentado no banco junto ao jardim do hospital, ao lado de um cinzeiro enorme, no qual deposita as cinzas com cuidado.
A sua frente, pequenas palmeiras. Mais adiante, o gramado no qual estão espetados alguns pinheiros raquíticos e envelhecidos. Fica com pena dos pinheiros – parecem frágeis e fatigados. Ele próprio se sente cansado, embora não se sinta velho. Sabe apenas que está ali a esperar. A esperar coisa alguma, é verdade.
Esmaga o cigarro no cinzeiro e olha para a rodovia que passa além do gramado. Fica por vários minutos assim, quieto, sem pensar em nada, vendo os carros passarem numa velocidade que lhe parece despropositada. São muitos carros, alguns buzinam, outros ultrapassam – tudo é nervosismo naquela rodovia, ao contrário do prédio branco e enorme no qual ele se encosta e continua a esperar. Pensa em acender outro cigarro, mas decide que seria um exagero. Chega de fumar. Agora passam caminhões, vários deles, enormes e resfolegantes, como se combinassem avançar sobre a rodovia todos ao mesmo tempo. Perto deles os carros lembram camundongos.
Estica as pernas, ajeita das costas contra a parede e segue sem pensar em nada. Um caminhão solta no ar uma coluna negra de fumaça. Um automóvel buzina furioso. E, para seu espanto, um ciclista surge na pista, dando pedaladas insistentes, talvez inúteis. São inúteis, decide ele.
Inútil como sua espera por coisa alguma.
Lá dentro do prédio branco, ele sabe, uma mulher de 87 anos fala sem parar. Não se entende o que ela diz, exceto algumas palavras soltas. Ela respira com dificuldade e suas mãos não param quietas. Mãos que buscam agarrar algo inexistente, vibram no ar, não desistem. Repetem os mesmos gestos, voltam a afastar a coberta, tentam retirar a sonda que mergulha em seu braço.
Viu aqueles gestos e palavras inúteis se repetiram ao longo da noite. E, como num milagre, lembra agora que num certo momento a mulher de 87 anos o olhou e sorriu. O mesmo sorriso de sempre. Há algo de moleque naquele sorriso. É a mesma? Fala com ela, pergunta se sabe que ele é.
Ela aprofunda o olhar, torna-se séria e chora. Ela o reconheceu. Quando chora é sinal de que o reconheceu.
- Quem é este que está aqui? pergunta a enfermeira.
O rosto da mulher vence o choro e diz:
- Meu filho.
Aquelas palavras são comemoradas com aplausos. É a mesma, pensa ele.
Mas logo as mãos voltam a se contorcer desencontradas embora ele descubra, sob a pele fina devastada por hematomas, sinais dos dedos delicados, da mão hábil e de traços refinados, que eram capazes de fazer bordados, crochê, vestidos, tricô, anotações em caligrafia elegante em pedaços de papel. Mas é preciso não se iludir: não esperar coisa alguma.
Acende outro cigarro. Os caminhões voltam a se precipitar sobre os automóveis. Os automóveis voltam a fugir desesperados ao longo da pista. Estranhamente, ele não ouve seus roncos, sua vibração, as freadas – lembra um filme mudo, movimentos puros.
Uma enfermeira surge no corredor. Carrega uma bolsa de plástico e sorri. Ele sorri também. Calcula que já se passaram uns vinte minutos, deve voltar ao quarto. Esmaga o cigarro fumado pela metade, levanta-se e dá dois passos na direção do gramado que, apesar do tumulto de carros e caminhões ao fundo, lhe parece um cenário idílico, como se naquele verde ele pudesse caminhar para sempre.
Respira fundo e fecha os olhos. É preciso esperar, pensa. Esperar coisa alguma. Um amigo lhe dirá, dois dias depois, que passou pela mesma experiência, algo como um pesadelo sem fim. Imitação dos carros na rodovia. Sucessão de gestos e movimentos que não vão a lugar algum. Como os pinheiros tristes que contempla por um tempo que parece não ter fim.
Sobe as escadas, avança pelo corredor, a mesma agonia o aguarda no último quarto à direita, onde a noite simula um túnel do tempo. No entanto, ele aguarda. Quando menos se espera, o sorriso que viu ainda menino.

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