Barbeiros
e dentistas são assemelhados. Roupas brancas, muito friso na camisa, limpinhos
e formais. E são dados a teorias e grandes discursos.
Como
entender que dentistas queiram bater papo conosco enquanto duelamos com aquele
caninho que suga nossa saliva? Ou, quanto aos barbeiros, se tememos aquela
tesoura afiadíssima tirando finos de nossas orelhas? E a navalha? E a broca? Como
mexer um só músculo diante de tanta ameaça?
-
Hum, hum – a gente rosna para o dentista, sem ter ouvido o que ele disse.
-
Nada disso! – corrige ele – Nada disso!
-
É verdade – concordamos, sendo essa a melhor tática.
Ele
retoma suas teorias. Ficamos de boca aberta, o caninho sugando nossa saliva. Abre
umas gavetinhas, cata novos instrumentos de tortura, uns pinos ameaçadores, e
volta:
-
O que você disse? – pergunta ele.
Não
dissemos nada. Estávamos lutando com o caninho sugador.
Já
os barbeiros são tidos como bons de papo. Tive um amigo que era um tímido
profissional, avesso a todo contato humano. Só curtia música erudita e literatura
clássica. Tinha horror de ajuntamentos, não gostava de futebol, jamais colocara
os pés num estádio. Sempre de terno e gravata. Sapatos impecáveis e um
guarda-chuva. Nenhum esporte. Preferia traduzir discursos de Cícero.
Pois
um dia o encontrei empunhando um jornal de esportes.
-
Que é isso? – perguntei.
-
Vou ao barbeiro, disse ele.
-
E daí?
Explicou,
muito formal:
-
Preciso bater papo com o barbeiro. Dia desses se ofendeu porque eu não sabia
que o time dele ganhara o campeonato. Como tem o apelido de Gaúcho, achei que
torcia pelo Inter, mas lá no sul existe outro time, o Grêmio. Eu não sabia. E
ele é gremista. Também não sabia. Quase me mata com uma tesourada. Doutra feita
– era dos poucos que ainda usavam “doutra feita” – me censurou por desconhecer
o goleador do seu time. Desde então leio o jornal, decoro a classificação,
memorizo o artilheiro. Como quem vai para um exame da OAB.
E,
diante do meu espanto, completou:
-
Já viu a tesoura que ele usa? Um perigo.
Foi
quando me lembrei do meu barbeiro. Depois de várias tentativas inúteis de
conversar comigo, ele mergulhou em devaneios:
-
Sabe o que eu queria mesmo?
Parei
de folhear uma dessas revistas que folheamos em barbearia. Ele me olhou através
do espelho:
-
Ganhar na loteria. Já pensou?
-
Já pensei. Mas não adiantou.
Ele
me olhou com reprovação, o assunto era sério, nada de gracejos. E resolveu
podar minha sobrancelha, o que é perigosíssimo. Uma piscadela e... Ele continuou:
-
Ganhar uns vinte milhões, certo? Melhor, vinte e cinco. Faço uma lista de
parentes, dou um milhão para cada um. Mas – a tesoura estalou no ar – não vai
ser assim na moleza. Empresto. Juros baixos, claro. Mas vou cobrar, pois eles têm
que valorizar o dinheiro, fazer render, trabalhar. Nada de moleza. Dinheiro se
ganha trabalhando. Não é certo?
-
Certíssimo, concordei, de olho na navalha que ele empunhou.
-
Depois, viajaria pelo mundo. Eu, as crianças e a patroa.
Antes
de terminar o corte, ele já havia comprado um barco, feito uma excursão ao Betto
Carrero, passado o Natal em Nova York. Na volta, participou do programa do Ratinho,
adquiriu um camarote no Couto Pereira e deu uma volta olímpica no campo para
comemorar a conquista da Libertadores.
-
Seria o máximo, não seria? – e, sem esperar resposta, mandou que eu abaixasse a
cabeça; ia passar a navalha no meu cangote.
Obedeci.
Como diria o meu amigo dado aos clássicos:
-
Discordar? Quem há de?
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