Manuel Bandeira é
sempre louvado como poeta e com toda justiça. Mas nem sempre nos lembramos dele
como o refinado cronista capaz de relatos deliciosos sobre a arte e a arquitetura
barroca, os recitais de piano e as peças de teatro da primeira metade do século
XX, o nascimento do cinema, os primeiros filmes e as primeiras experiências
cinematográficas nacionais, as exposições de artes plásticas, a atividade
literária etc. Mas, além dos registros de seu tempo, o cronista também era capaz
de nos deliciar com histórias ora líricas, ora cheias de humor moleque.
Em dezembro de 1931, ao
escrever sobre o romancista Ribeiro Couto, o poeta nos brinda com uma dessas
crônicas antológicas.
Os dois, velhos amigos,
acabaram envolvidos em um triângulo amoroso inesperado em cujo vértice se
colocou uma mulher misteriosa e impulsiva identificada como “a Magra”. Ela
vivia com Bandeira há mais de dez anos e, diz ele, sempre o enganou com todo
mundo. O poeta era lírico e paciente, pelo visto. Um belo dia, depois de paquerar
Ribeiro Couto por um longo tempo sem que ele lhe desse a menor bola, a Magra tomou
uma atitude e foi à luta. Com “sua boca muito vermelha de rouge”, escreve Bandeira, bateu à porta do romancista e atacou o
incauto Couto. Estava consumado o triângulo.
Ao contrário do que se
poderia esperar, Ribeiro Couto não simulou protestos indignados por conta da
amizade que o unia ao poeta, e Bandeira, quando soube do caso, não lhe deu importância.
Não correu nem sangue nem lágrimas e o triângulo se desfez mais adiante, sem
mortos ou feridos. E a amizade entre os dois permaneceu.
Pois Ribeiro Couto era
uma figura ímpar, testemunha Bandeira. Homem da cidade, diplomata, homem do
mundo, era ao mesmo tempo um apaixonado pelo interior brasileiro, pelo qual
chegara a manifestar certo desdém, e de onde tirou a temática de Cabocla. Tratava-se de uma mente flexível,
adaptável, que elogiava em seus textos a mestiçagem da Cabocla e sua pele
morena, embora Bandeira o acuse de preferir as mulheres brancas. Quando
Bandeira lembrou que se contradizia, ele declarou, perplexo: o que eu tenho a
ver com as preferências e gostos de meus personagens? Eis aí, era um
ficcionista de verdade. Criava mundos com vida própria, que não se resumiam as
suas preferências.
Por tudo isso, Manuel
Bandeira dá razão à cozinheira de Ribeiro Couto, Balbina, uma preta velha e
sábia. Ela costumava dizer a respeito daquele homem de letras refinado e desconcertante,
seu patrão:
- Seu dotô tem outro
dentro.
É assim que chegamos a mais
uma figura da nossa literatura que também tinha outro dentro, como lembrou Bandeira
em crônica de 1930, citando a mesma cozinheira de Ribeiro Couto, Balbina.
Trata-se de Machado de
Assis, aquele homem franzino e delicado que teve o privilégio de conhecer
pessoalmente e que o deixava inquieto. O menino Bandeira observava a sua casa
como quem reverencia um templo e acompanhava os passeios ao final da tarde que
Machado, já idoso, dava pelas calçadas do bairro, abraçado a Carolina, compondo
um casal de apaixonados. Ele se encantava com aquele espetáculo de ternura, mas
não deixa de observar que, “aquele Machado de Assis me inquietava. Aquela
história do enfermeiro...” É fato que Machado tinha um olho voltado para o
doentio, o sofrimento, a derrota. As pequenas maldades e as grandes perversões.
E conclui Bandeira: “Machado de Assis era um monstro. Um monstro que não fazia
mal a ninguém, que nunca haveria de fazer mal a ninguém, mas não obstante um
monstro”.
Ou seja, voltando à cozinheira
de Ribeiro Couto, Machado tinha outro dentro. Era esse outro que espionava a
vida e seus semelhantes, descobria deslizes e traições, sendo ao mesmo tempo
capaz de escrever uma obra-prima como o conto “Uns braços”, no qual temos uma
das mais sensuais narrativas da literatura de qualquer tempo. E Bandeira
arremata dizendo que nesse conto “não acontece nada”, o que, a meu ver, junto
com “o outro” da cozinheira Balbina, vale por toda uma teoria literária.
Há o enfermeiro, é
verdade. Mas aqueles braços...
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