Um equívoco humano frequente
é privilegiar o indivíduo como culpado. Claro que é vasta a relação das ações
em que a culpa cabe aos indivíduos. Ocorre, como usava dizer o escritor João
Antônio, que há um porém.
Vejamos o caso da água,
da sua escassez e de seus gastos. Todos sabemos, e os ecologistas de plantão
nos alertam, que é justa a preocupação com as badernas que aprontamos no
planeta, entre elas o uso e abuso da água. Acontece que a ênfase nessa batalha
pela conscientização a respeito do problema se limita em grande parte a azucrinar
os indivíduos para que tomem banhos menos demorados, para que não deixem a
torneira aberta ao escovar os dentes, que não lavem o carro, a calçada etc.
Longe de mim dizer o
contrário. Devemos cuidar do consumo de água, está claro, seja no banho, ao
escovar os dentes ou lavar a calçada e o carro. O desperdício é grave e na
maior parte das vezes estúpido.
Mas tem um porém. Ainda
não se tornou uma convicção coletiva que o grande consumo e o grande
desperdício de água ocorrem em empresas, nas indústrias, em órgãos
governamentais que deveriam cuidar da água. São eles, por desleixo, ignorância
ou ganância, que desperdiçam em grande escala. Eis o porém.
O mesmo ocorre com o
trânsito. Hoje há no país uma campanha, justa e necessária, que busca diminuir,
nas ruas e estradas, uma mortandade que lembra catástrofes em tempos de guerra.
Campanha absolutamente necessária, é claro. No entanto, comete o mesmo
equívoco. Há uma ênfase quase única no motorista e seus descuidos, em especial
naquele que dirige bêbado. Ora, dirigir bêbado é um crime medonho que deve ser
punido com todo o rigor, está claro.
Mas há aqui um porém.
Não se destaca que a
indústria automobilística, as montadoras, as revendedoras, através da publicidade
maciça que veiculam na mídia – e mesmo o governo, incentivando essa mesma indústria
– continuam, no século XXI, a incensar a mitologia do automóvel nascida no
início do século XX. Ele é mostrado como símbolo de poder, força, possibilidade
de conquistas sexuais e domínio sobre os outros. Uma fonte de prestígio
ilimitado e de poder sem fronteiras, incentivando motoristas de miolos moles a
apossar-se de um volante com a convicção de que estão acima do bem e do mal.
Ainda circula pelas
televisões uma propaganda de um automóvel no qual o motorista se imagina um
privilegiado por ser o único a ter um carrão como aquele. Depois, pensa ser o
único que tem aquele carrão num planeta do qual outros homens e carros fora
banidos. Só sobraram ele e as mulheres, que o adoram, está claro. É o auge do delírio
narcisista e ególatra.
Está aí o porém. Esse
automóvel das propagandas, um bólido que rabeia, dá cavalos de pau, levanta
poeira, ultrapassa, atrai conquistas, é um incentivo ao crime nas ruas e
estradas. Penso que a indústria automobilística deveria ser levada a se
penitenciar dessa mitologia doentia. O endeusamento da velocidade e da força é pelo
menos tão criminoso quanto a estupidez do bêbado que sai dirigindo e matando.
Mas não se fala nisso. É
o porém.
Já os caminhões, pelo
tamanho, peso e velocidade, quando se envolvem em acidentes – frequentes, é bom
lembrar – causam tragédias enormes. Culpar o motorista? Certamente muitos deles
têm culpa. Mas há de novo um porém. A que condições eles são submetidos pelas
transportadoras e pelos distribuidores de fretes? Que tipo de estradas enfrentam?
Os estimulantes (rebites) que tomam são exigidos pelas regras perversas a que
são submetidos.
Mais um exemplo. A
violência nas escolas, agora apelidada de bulling.
Será que basta criminalizar o autor de abuso?
As escolas não são
organismos externos à sociedade. Elas são condicionadas pelas exigências sociais.
O porém é que tudo em volta dos jovens é oferecido como um espetáculo de força,
domínio e brutalidade. Os heróis de games e filmes raramente têm cérebro; são
equipados apenas de músculos, armas e pontapés. Serve-se aos jovens a luta e a
desforra. Seja em filmes, em games, nas novelas de televisão e no cotidiano incentivo
ao “sucesso” a qualquer preço. Vencer é o que importa. E é o porém.
Portanto, há que mudar o
hábito de jogar a culpa em indivíduos. É mais fácil, está claro, mas não
resolve nada. A doença é social.
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