domingo, 8 de junho de 2014

Vinicius de Moraes e o homem cordial







Vinícius de Moraes (em outubro fará 101 anos, vivíssimo) me parece a mais completa encarnação do que Sérgio Buarque de Holanda chamou de “homem cordial”.
Devo me explicar. Essa expressão – homem cordial – foi mal interpretada por brasileiros que não se deram ao trabalho de ler “Raízes do Brasil”, livro magistral. Quem não lê os textos-fonte de sua cultura pega os conceitos pelas beiradas, dependurado em citações capengas.
Assim, ao contrário do que é usual – em rádios, jornais, academias etc. – Sérgio Buarque jamais disse que o brasileiro é pacífico, tranquilo, paciente ou bonzinho. Desenvolveu com muita propriedade a tese de que o brasileiro é uma criatura que se orienta pelo coração. Afinal, cordial vem de cor-cordis, coração em latim.
Outros povos se orientam pela razão, pela experiência empírica, por costumes ou dogmas religiosos ancestrais. Os alemães buscam razões para fundamentar seus atos e pensamentos enquanto os ingleses e norte-americanos se apoiam em dados empíricos para pensar e agir. Já os brasileiros agem de forma afetiva, dizia Sérgio Buarque. Muitas vezes levados por impulsos. Podem ser muito afetivos e carinhosos em expressões e gestos, mas, como qualquer povo, podem ser violentos, injustos, tirânicos. Os leitores pensem em episódios como Canudos, nas degolas durante a Revolução Federalista, na sucessão de ditaduras pelas quais fomos assolados e na violência urbana atual.
Ser cordial não significa ser bonzinho, mas colocar o coração acima da razão, dando-lhe um valor superior nas decisões – o que pode eclipsar a razão ou a experiência.
Isso é frequente na mídia. Dia desses assisti uma remexida e bela moçoila falando da peça de teatro da qual participa. Fiquei sabendo de cólicas na estreia, de friozinhos na barriga antes de colocar o pé no palco, do ambiente de amor que uniu o elenco, da emoção do público, do carinho com que o diretor tratou a todos.
E não ouvi uma só palavra sobre a peça, o texto da peça, seu valor literário e dramatúrgico, o autor, suas obras e sua época, o sentido e as reflexões que provoca. A moçoila e o entrevistador estacionaram nas “emoções”.
É o homem cordial recusando-se a pensar.
Muitos pensarão que estou criticando Vinícius. Não. Ele é o homem cordial na sua face positiva e criativa, que fez da cordialidade instrumento de saber e  conhecimento – forma de dar sabor à vida.
Lembro-me do delicioso “Poema enjoadinho”:

“Filhos... Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-los?”

Uma maravilha de concretude, de um saber e sabor que é tátil, olfativo, auditivo, gustativo, visual. O homem cordial usa desses meios para construir seu universo. As razões são afetivas. Mas não são ilusões melosas ou “emoções”. Trata-se de uma sabedoria do sensível.
É baseado em Vinícius que desejo que os brasileiros venham a usar seu coração como ele o fazia. Não como fuga ao pensamento, mas como base de um modo de ver e sentir o mundo que supere fundamentalismos primitivos ou frieza tecnológica de raciocínios gélidos – extremos entre os quais o mundo atual se debate.




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