domingo, 21 de dezembro de 2014

Cadê o ratão?









Eles vieram aos poucos.
Certo dia escutei marteladas ao passar pela cozinha. Estranhei, pois ao lado do prédio havia apenas um terreno coberto de mato. Matagal respeitável, feito desse capim que se chama de praga, além de pequenos arbustos.
Apareciam passarinhos e algumas borboletas davam bordejos por ali. E eu me sentia, aqui do terceiro andar, contemplando um jardim.
Foi quando descobri um habitante daquelas paragens. Um ratão gordo e cinzento, com o qual me encontrei de supetão na entrada do edifício. Eu saía com meu carro e o ratão vinha em disparada na direção da garagem. Freei bruscamente. O ratão fez o mesmo. Brecou as patas, derrapou uns centímetros de bunda virada e disparou rampa acima. Voltou ao matagal.
Passei a olhar o matagal com outros olhos. Ali morava alguém. Um ratão. Feio e balofo, mas um ser vivo. Escondido pelo capim e pelos arbustos, estaria por ali, quem sabe a olhar para cima tentando descobrir o que aquele sujeito fazia na janela observando seus domínios.
Penso que mesmo um ratão deve ter certo senso de propriedade, tanto que, ao dar com meu carro na rampa da garagem, disparou de volta a seu mundo, sabedor que estava fora de seus domínios.
Assim passamos a viver. Ele lá, eu aqui. Nunca mais o vi. Recusado por ser um bicho feio e desajeitado e sujo, estaria lá. O matagal adquiriu para mim um novo sentido. Era moradia de alguém, além de pássaros e borboletas.
Naquela ocasião eu podia ver um edifício vizinho, em cujas janelas quase nunca aparecia alguém, exceto um sujeito gordo de camiseta regata e, um belo dia, uma jovem ao telefone. Sendo jovem, ficou durante horas falando, falando, falando. Isso deu um novo sentido ao cenário. Pássaros, borboletas, um ratão, um gordo e uma jovem ao telefone. Falaria com quem? Nunca saberei.
E o ratão, falaria com quem? Talvez houvesse alguma ratinha por ali, mas nunca a vi. Falar nisso, por que ele tentou entrar desesperado na garagem naquele dia? Algum gato o perseguia ou quem sabe outro ratão dono da ratinha? Aquele terreno verde, cheio de mato, era enfim um universo a explorar e eu me divertia.
Agora tudo isso acabou. As marteladas eram dadas por dois homens que fincavam estacas. Fizeram buracos, brotou água do chão, escavaram. Depois veio uma máquina que, com crueldade, destruiu o que havia de mato. Restou apenas a terra revirada, que outra máquina tratou de aplainar. Surgiu então uma grua gigante, espécie de gafanhoto metálico, que enfiou um parafusão no terreno. Temi que viesse um bate-estaca. Mas não. Feito o buraco, outro gafanhoto lá da rua enviava concreto para enchê-lo. Ferros foram espetados. Depois, mais concreto e mais ferro e vigas e pilares e lajes e tijolos e lá está o edifício em seu quinto andar.
Sem moça telefonando na janela, sem sujeito gordo de camiseta.
E fiquei me perguntando: cadê o ratão?
Eis o que me preocupa. Onde foi parar o ratão nesse terreno devastado? Passarinho e borboleta voam para longe, a jovem arranjará outra janela da qual telefonar. E o gordo talvez percorra com olhos curiosos o edifício que sobe.
Mas o ratão? Eis o que me parece indecifrável.




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