Nosso primeiro encontro
quase termina em desastre. Entrei na cozinha e um inseto negro voou em ziguezague
na minha direção – por pouco não acerta meu nariz. Minha reação foi imediata:
tentei um tabefe. Errei longe. Em novo zig ou zag, o bicho escapou e sumiu.
Esqueci o assunto,
peguei um café e fui cuidar da vida.
No dia seguinte, quase na
mesma hora, fui à cozinha e lá estava ela, dependurada na beira da tampa do
vidro de mel, num alpinismo desesperado. Ia e vinha, enfiava o bico na rosca da
tampa, rodopiava em busca de melhor posição.
Achei engraçada a sua
insistência. Parei ao lado da mesa e ela, talvez chateada com meu riso irônico,
disparou em voo incerto, aquele em ziguezague, e foi na direção da janela, que
estava fechada. Temi que se espatifasse contra o vidro, mas ela mudou de rota, manobrando
um brusco ângulo de 90 graus, e foi na direção da área de serviço. Disparou
janela afora.
Embora o bicho – era
assim que a via, lamento – tivesse me parecido apenas engenhoso e insistente, resolvi
depositar uma colher de mel num pires que coloquei sobre a mesa.
No dia seguinte me
visitou o meu amigo Carlos Dala Stella trazendo um pão daqueles que inventa só
para causar inveja aos amigos que não são capazes de fazer um biscoito. Eu fiz
o melhor café de que sou capaz e estávamos sentados à mesa da cozinha para
continuar nossos papos delirantes sobre tudo e sobre coisa alguma.
Foi quando ela voltou.
Ela, a vespa. O Carlos levou um susto, eu me afastei do pires e ficamos
observando seu voo incerto, de bruscas mudanças de rota. Circundou o pires,
sobrevoou o mel, deu um rasante junto ao meu nariz e aterrissou no pires.
Ficamos observando. Ela
se aproximou da beira daquele marzão de mel e se imobilizou a sugar. Nós sequer
falávamos. Aliás, nem ela, a vespa.
Foi quando, súbito, ela
levantou voo na direção da janela da área de serviço. Mas mudou de plano de voo
e saiu pela janela da cozinha. Instável, pensei, muda de rota. Imprevisível. Do
sexo feminino, certamente.
Eu e o Carlos voltamos
ao pão, ao café e aos nossos delírios de final de tarde.
Desde então a vespa
retorna todos os dias, não raro mais de uma vez, embora não falte na hora do
café. Surge de inopino – acho que essa palavrinha descreve bem as suas
aparições. Suga um bom bocado e se vai.
No terceiro dia, mandei
uma foto para o Carlos comprovando que ela continuava me visitando.
E assim continuamos, eu
e a vespa. Quando terminava a cota de mel no pires, eu repunha. Abri um espaço
na mesa criando uma espécie de campo de pouso para a vespa. Curiosamente, ela
retornava na hora em que eu estava tomando café. Tirava um fino na minha
cabeça, sobrevoava o pires, ameaçava ir para um lado, ia para outro, afinal
aterrissava e ali ficava ao meu lado. Eu tomando café, ela sugando o mel.
Éramos felizes, eis
tudo.
Mas eu, não sendo
vespa, tenho essa mania humana de pensar: onde ela se enfiava nos intervalos
das visitas que me fazia? Eram dias de sol muito forte, mas poderia chover e,
nesse caso, também as vespas precisam de um abrigo. Onde seria a casa daquela vespa? Olhei em
volta do prédio, me debrucei nas janelas, nada. Seria uma vespa sem teto?
E outra aflição me
ocorreu: por que sempre sozinha? Existem vespas solitárias? Não sendo vespa,
pensei: e se ela morrer? Vespas devem viver pouco. Preocupado, fui consultar na
internet. As vespas vivem um ano, diz uma sábia enciclopédia. Teríamos tempo
bastante. Mas existem os predadores. Qual seria o predador das vespas
solitárias? – me perguntei, já irritado, querendo declarar guerra a esse
inimigo desconhecido.
Bobagem. Voltei ao
café, ao sanduíche, e ralhei comigo mesmo: deixe de besteira, está atrasada,
logo chega. Deve ter achado mel pelo caminho.
Ela chegou quando eu já
recolhia a xícara, o pão, o café. Nem se importou comigo e com meus cuidados.
Rodopiou, deu seus voos esquinados, aterrissou no pires. E sugou o mel. A vida
voltava ao normal.
Foi quando me ocorreu que
pensar faz mal ao ser humano. Ela veio não só naquele dia, mas no seguinte. E
assim por várias semanas. Era tão previsível que eu colocava o café na mesa e
esperava que chegasse. Não demorava. Só então eu tomava o café em sua
companhia.
Ocorre que há uma
semana tomo café sozinho. Terá sido o frio ou a chuva que caiu por esses dias.
A ventania. Quem sabe. Talvez um predador cruzasse seus caminhos. Vida de vespa
deve ser acidentada, daí seu voo imprevisível, sempre na defensiva. Vai ver,
encontrou mel de melhor qualidade em outro lugar. Trocou meus cuidados pelos de
outro cuidador. Mudou-se de bairro talvez.
Uma coisa é certa: ela
nunca mais voltou.
São ótimas as suas histórias. O jeitão de contá-las, melhor ainda. Abraço, Roberto.
ResponderExcluirEm tempos de crise, em meio a tantas “ferroadas”, é muito bom encontrar uma vespa de verdade assim domesticável, assim amiga, que nos é surpreendentemente apresentada com tanta delicadeza, tanta sensibilidade.
ResponderExcluirSinto muito, caro Gomes, por ter-se ido sua improvável companheira para o café matinal.
Mas não se aflija nem entristeça! (Até das vespas é necessário aprender a desapegar-se...)
Pense – já que não se pode furtar a isso – que, talvez, sua vespa estivesse prestes a completar um ano e...
Acredito mesmo que seus pires com mel devem ter sido o melhor presente de aniversário que ela jamais recebeu...
"Pensar faz mal ao ser humano", pois quando pensamos criamos expectativas sobre as coisas pensadas, seja sobre si ou sobre os outros,humanos ou não. Manter a imprevisibilidade das vespas e tentar imitar esse particular adjetivo delas, pode nos ser favorável diante das possíveis decepções na vida.
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