Ainda
no berço, eu era irrequieto e reclamão. Tendo minha mãe mais o que fazer, ela descobriu
que o rádio era um santo remédio para minha agitação. Começava assim a minha
paixão por esse meio de comunicação que é, sem dúvidas, o melhor amigo do
homem.
Naquele
tempo, o rádio ficava entronizado num canto ilustre da sala, compondo uma
espécie de oratório profano. Por isso minha mãe arrastava o berço para perto dele.
Havendo música ou falatório no rádio, eu ficava atento, girando os olhos em
busca da fonte de tanto som. E me acalmava de imediato.
A
verdade é que minha mãe era vidrada em rádio. Tínhamos um aparelho enorme, tipo
capela, que ficava ligado o dia inteiro, sintonizado na rádio Nacional do Rio
de Janeiro, ondas curtas. Ela ouvia noticiários, programas de calouros e
programas dos astros da época, Chico Alves entre eles. Além de novelas. Na
verdade a sintonia só mudava pela manhã, quando meu pai, atendendo a seu lado caboclo,
tomava café ouvindo música caipira na rádio local. Mal ele saía para trabalhar,
lá ficávamos nós no embalo da rádio Nacional.
Ela
conversava com o rádio como se ele fosse gente. Reclamava de cantoras chorosas
– “parece uma gata miando!” – ou cantores trovejantes – “esse engoliu um
trombone!” Ou xingava o locutor do noticiário por razões que me escapavam.
Certa
ocasião veio trabalhar lá em casa uma moça chamada Isabel. Vinha do interior e jamais
vira chuveiro ou rádio. Com o chuveiro se acostumou fácil. Já com o rádio teve
dificuldades. Olhava desconfiada para aquela caixa, passava ao largo. Um dia
minha mãe reclamou:
-
Isabel, você não passou um pano no rádio.
Isabel
se encolheu:
-
Mas a senhora desliga ele antes, né?
Só
mudo o rádio pode ser espanado.
E
os sustos de Isabel continuaram. Um dia, ouvindo um locutor que a irritou,
minha mãe avançou na direção do rádio e o desligou com fúria:
-
Cala a boca, bobalhão!
Isabel
juntou as mãos contra o peito e arregalou os olhos:
-
Credo, dona Ondina!
-
O que foi, Isabel?
-
O homem do rádio não fica chateado quando a senhora grita com ele?
O
rádio fez parte da minha vida desde um tempo em que eu não tinha a menor ideia
do que fosse minha vida. Acabei guardando na memória um repertório anterior ao
meu nascimento. Devo à minha mãe essas aulas de cultura musical.
Vida
afora ela ouviu rádio e preservou a lembrança de um Rio de Janeiro do qual
falava como se acabasse de voltar da Confeitaria Colombo.
Aos
oitenta e seis anos, morando em casa de repouso, a sua memória confundia tudo. Eu
chegava, ela me examinava:
-
Tu és o Otávio ou o Odílio?
Eram
seus irmãos, já falecidos.
-
Sou eu, seu filho.
-
Quem? – seu olhar de viés duvidava.
Nas
aulas de musicoterapia, ela se animava. A primeira a acompanhar as músicas, cantarolando
sambas, boleros, sambas-canções, tangos, valsas. Os médicos se espantavam com
sua memória musical, mas, se um deles perguntava:
-
Sabe quem eu sou?
Ela
resmungava:
-
Sei lá! – e apontava a cozinha: Me traz um café.
Já
não podia ingerir líquidos.
Mas
cantava que era uma beleza.
O rádio, uma paixão. Não fui radialista por timidez e graças à Proteção Divina, pois com meus problemas de garganta, eu teria que abandoná-lo muito cedo. Enfim, tudo mudou; antes era o milagre do rádio a singrar os ares do Universo. Hoje, o milagre é a Internet.
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