domingo, 5 de março de 2017

Uma cantora do rádio




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Ainda no berço, eu era irrequieto e reclamão. Tendo minha mãe mais o que fazer, ela descobriu que o rádio era um santo remédio para minha agitação. Começava assim a minha paixão por esse meio de comunicação que é, sem dúvidas, o melhor amigo do homem.
Naquele tempo, o rádio ficava entronizado num canto ilustre da sala, compondo uma espécie de oratório profano. Por isso minha mãe arrastava o berço para perto dele. Havendo música ou falatório no rádio, eu ficava atento, girando os olhos em busca da fonte de tanto som. E me acalmava de imediato.
A verdade é que minha mãe era vidrada em rádio. Tínhamos um aparelho enorme, tipo capela, que ficava ligado o dia inteiro, sintonizado na rádio Nacional do Rio de Janeiro, ondas curtas. Ela ouvia noticiários, programas de calouros e programas dos astros da época, Chico Alves entre eles. Além de novelas. Na verdade a sintonia só mudava pela manhã, quando meu pai, atendendo a seu lado caboclo, tomava café ouvindo música caipira na rádio local. Mal ele saía para trabalhar, lá ficávamos nós no embalo da rádio Nacional.
Ela conversava com o rádio como se ele fosse gente. Reclamava de cantoras chorosas – “parece uma gata miando!” – ou cantores trovejantes – “esse engoliu um trombone!” Ou xingava o locutor do noticiário por razões que me escapavam.
Certa ocasião veio trabalhar lá em casa uma moça chamada Isabel. Vinha do interior e jamais vira chuveiro ou rádio. Com o chuveiro se acostumou fácil. Já com o rádio teve dificuldades. Olhava desconfiada para aquela caixa, passava ao largo. Um dia minha mãe reclamou:
- Isabel, você não passou um pano no rádio.
Isabel se encolheu:
- Mas a senhora desliga ele antes, né?
Só mudo o rádio pode ser espanado.
E os sustos de Isabel continuaram. Um dia, ouvindo um locutor que a irritou, minha mãe avançou na direção do rádio e o desligou com fúria:
- Cala a boca, bobalhão!
Isabel juntou as mãos contra o peito e arregalou os olhos:
- Credo, dona Ondina!
- O que foi, Isabel?
- O homem do rádio não fica chateado quando a senhora grita com ele?
O rádio fez parte da minha vida desde um tempo em que eu não tinha a menor ideia do que fosse minha vida. Acabei guardando na memória um repertório anterior ao meu nascimento. Devo à minha mãe essas aulas de cultura musical.
Vida afora ela ouviu rádio e preservou a lembrança de um Rio de Janeiro do qual falava como se acabasse de voltar da Confeitaria Colombo.
Aos oitenta e seis anos, morando em casa de repouso, a sua memória confundia tudo. Eu chegava, ela me examinava:
- Tu és o Otávio ou o Odílio?
Eram seus irmãos, já falecidos.
- Sou eu, seu filho.
- Quem? – seu olhar de viés duvidava.
Nas aulas de musicoterapia, ela se animava. A primeira a acompanhar as músicas, cantarolando sambas, boleros, sambas-canções, tangos, valsas. Os médicos se espantavam com sua memória musical, mas, se um deles perguntava:
- Sabe quem eu sou?
Ela resmungava:
- Sei lá! – e apontava a cozinha: Me traz um café.
Já não podia ingerir líquidos.
Mas cantava que era uma beleza.




Um comentário:

  1. O rádio, uma paixão. Não fui radialista por timidez e graças à Proteção Divina, pois com meus problemas de garganta, eu teria que abandoná-lo muito cedo. Enfim, tudo mudou; antes era o milagre do rádio a singrar os ares do Universo. Hoje, o milagre é a Internet.

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