A cada dia temos novos motivos
para levar sustos e tropeçar no inaudito. Aliás, sempre pensei que o inaudito
fosse a designação de um tipo de arapuca que surge no meio do caminho, havendo
ou não pedra no meio do caminho.
Somos atropelados pelo
inaudito.
Dia destes recebi uma
mensagem inaudita enviada por uma livraria virtual. Como sou tarado por livros,
não reclamo destas invasões. Que não interferem nas minhas compras, embora a chuva
de e-mails seja diária e furiosa.
Sinto-me uma caça. Sabem meu nome, meu endereço, falam
diretamente comigo como se eu fosse o único destinatário de suas mensagens.
Mas o inaudito não é este.
É outro. E ele me leva a pensar no mundinho distorcido e desolador em que
vivemos. Dizia o e-mail: “Tem como
não amar títulos com até 80% de desconto?”
É verdade que o desconto é tentador, restando saber se é real
ou maquiado.
Mas também não foi isso que me levou ao inaudito.
O problema está na lógica da frase, que conduziu seu redator
ao delírio narcísico. Diz ele, o redator – ou ela, a frase – “como não amar
títulos” e oferece a razão: “com até 80% de desconto”.
A palavra amor já foi usada para muitas barbaridades. Para
justificar atitudes possessivas, agressões, assassinatos. Para aflorar na boca
de atores e atrizes que dizem fazer tudo “com muito amor”. Se forem cozinheiros,
cozinham com amor, o tempero principal de seus pratos. Há também o amor pelo
time de futebol, animais, natureza, trabalho, pátria e seleção. Muito amor,
como se vê.
Pasmo, me perguntei: amar pelos descontos? Quer dizer que um leitor
abre um e-mail com ofertas de livros e, vendo descontos avantajados, cai de
amores pelos títulos oferecidos?
Estamos num mundinho
muito estranho. Que se ame a mulher amada pelos seus olhos ou pelo conjunto da
obra, entendo. Que se ame seu país porque ali se nasceu, cresceu e aprendeu o
básico da vida, tudo bem.
Mas amar descontos?
Amar títulos pelos descontos?
Eis o que eu queria
dizer: é o inaudito.
O ser humano sempre foi
bicho desconcertante.
A primeira revolução
humana começou com o domínio do fogo. Embora resultado da engenhosidade humana,
ele foi entronizado como novo deus. O homem ajoelhou-se diante dele. Esqueceu
que ele próprio inventara como dominá-lo.
A invenção
revolucionária atual é a avalanche ansiosa do hiperconsumo. É preciso se
empanturrar de coisas, roupas, carros, bijuterias, eletrodomésticos, bugigangas.
O celular é o melhor símbolo
dessa alienação. Se uma catástrofe exterminar com os celulares, teremos o maior
surto de desespero na face da terra. Entregues a si mesmos, os humanos já não
tolerarão o vizinho e não se olharão no espelho. O confronto final será
inevitável.
Eis o inaudito: quem
seria capaz de amar descontos? Que ideia é essa de amor? Que ideia de livros?
Que ideia de cultura? Que ideia de si mesmo? Que criatura comprará um livro por
conta do apelo erótico de um desconto?
Estou exagerando?
Acho que não. Quem
exagerou foi o redator dessa triste e involuntária síntese perfeita do mundo em
que vivemos.
Comprei um livro pela Internet, agora sou inundado com anúncios e mais anúncios de livros e de livrarias virtuais. Comprei um par de sapatos pela Internet, agora qualquer página que eu abra na internet vem abarrotada de anúncios de sapatos.
ResponderExcluir