Há não muito tempo, cada
cidade tinha seus malucos de estimação, com os quais a população convivia em
paz. Eles faziam parte do folclore local.
Ainda criança, conheci um tipo desses em
Blumenau. Era um mulato alto, forte, de rosto muito bonito. Carregava um saco
de aniagem nas costas e todos o tratavam pelo apelido, Guarapuvu, nome de
árvore notável pelo porte e beleza. Falava pouco, mas, quando falava, construía
frases bem pensadas e elegantes, além de ter um vocabulário de muito boa
qualidade.
No entanto, morava na rua,
dormia nas calçadas. Vivia do que lhe davam.
Alguns juravam que tinha
formação universitária, tendo sido professor da rede pública, o que na época era
coisa da mais alta qualidade.
Ocorre que certo dia ele
voltou para casa mais cedo e encontrou a mulher naquilo que Lupicínio Rodrigues
descreveu como “nos braços de um outro qualquer”.
Foi quando começaram suas
andanças pelo mundo.
Em Curitiba também tivemos
malucos folclóricos e admiráveis. O mais genial e extravagante de todos foi
Gilda, nome sob o qual residia Rubens Aparecido Rinque. Ele - ou melhor, ela – era
divertida, dava gargalhadas e debochava de todo mundo, aprontando correrias ao
ameaçar um beijo na boca de algum passante. Pintava os lábios com batom
vermelho vivo, com o qual besuntava não apenas os lábios, mas seus arredores,
produzindo um bocão exuberante.
Pois Gilda era alegre,
muito antes que o termo gay se generalizasse. Era divertida, abusada,
debochada, irreverente, desrespeitosa, lambendo os próprios lábios com
gulodice, anunciando ser sedenta de sexo e de orgias. Encontrou a morte em
1983, talvez numa briga, numa casa abandonada da Desembargador Motta.
Gilda era amada por
muitos, mas despertava a fúria dos machões e colocava em xeque o caráter
provinciano da cidade.
Já o Esmaga era um homem
pequenino, com cara de sátiro, cheio de malícia e astúcia. Circulava pela Boca
Maldita a pedir trocados para tomar café. Conhecia a todos e era reconhecido
por todos, entre eles governadores, políticos, intelectuais, artistas. Com sua
fala malandra e seu sotaque ingênuo, protagonizou causos que causaram embaraços
a poderosos de então, embora ele não fosse contestador do ponto de vista político.
Um tipo esperto, que sabia das patifarias humanas naquele centro de fofocas que
era a Boca Maldita. Sabia como desmontar poses de pretensos artistas,
cineastas, escritores, políticos e picaretas em geral. Esmaga, sem eira nem
beira, dizia e fazia coisas do arco da velha.
Hoje não encontramos nada
de parecido. Ao invés de personagens que viravam pelo avesso os costumes e
crenças urbanas, o que vemos são zumbis, fantasmas de si mesmos. Criaturas
doentias, de roupas imundas, sacudindo-se com gestos mecânicos de robô, a circular
de um lado para outro produzindo apenas espanto. Não sabem onde estão nem que
cidade é essa, corpo e alma corroídos pelas drogas.
Os doidos de algumas décadas atrás faziam parte da vida de todos. Essas almas penadas atuais são destroços humanos dos quais não sabemos os nomes e o que representam, já que eles próprios não sabem quem são e o que suas figuras denunciam.
Os doidos de algumas décadas atrás faziam parte da vida de todos. Essas almas penadas atuais são destroços humanos dos quais não sabemos os nomes e o que representam, já que eles próprios não sabem quem são e o que suas figuras denunciam.
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