A imagem, de 1970, não
me sai da cabeça até hoje. Lá na última fila de carteiras, surgiu um tipo de
ombros largos, pescoço grosso, cabelos cortados muito curtos, tudo isso
emoldurado por camisa branca e paletó.
Era óbvio. Um agente do
serviço secreto invadira minha modesta sala de aula.
Ali eu lecionava, para
uma turma de jornalismo, uma matéria chamada Introdução à filosofia, pela qual,
aliás, os futuros jornalistas não demonstravam muito interesse. Aos trancos e
barrancos eu tocava o barco sem pretensões de formar novos pensadores ou de
produzir qualquer revolução sociocultural.
Estava eu cumprindo a
minha tarefa quando citei o filósofo Platão. Mal terminei a frase onde
encaixara o nome do filósofo grego, e o tipo lá da última fila de carteiras
ergueu o braço pedindo a palavra.
Respirei fundo
esperando pelo pior. Mas, como é de lei, dei a palavra a ele.
Ele carregou um pouco
no tom de deboche e disse:
- Professor, não acha
que esse tal de Platão era meio comunista?
Levei um susto, claro. Os
alunos saíram da pasmaceira jornalística costumeira e um deles jogou a mão
contra a testa. Já era alguma coisa.
Recuperado do susto, eu
perguntei:
- Veja... como é mesmo
o seu nome?
Ele agitou-se na
cadeira e disse que ainda não se matriculara.
- Mas tem um nome,
claro.
Ele disse que sim, mas
não declinou o nome. Devia ser mesmo um agente secretíssimo. Fui em frente.
- Olha, meu caro,
Platão viveu no século IV antes de Cristo e as ideias comunistas só passaram a
circular no século XIX depois de Cristo. Uma distância de uns vinte e três
séculos.
Ele se retesou na
carteira.
Continuei:
- Assim, por mais
brilhante que fosse a mente de Platão, ele não poderia prever o que aconteceria
vinte e três séculos depois. Enfim, nem mesmo a palavra comunismo fora
inventada. Além disso, o que será “meio comunista”?
Silêncio tumular na
sala e uma cara de fera enjaulada por parte do sujeito.
Nos anos da ditadura
militar estávamos sujeitos a esses constrangimentos - e a outros, piores. Não
era raro surgirem nos corredores da universidade tipos de cabelo escovinha,
fortões e sisudos, que entravam em salas de aula ou onde houvesse alguma
palestra. E lá ficavam com olhos tensos em busca de perigosos comunistas.
Depois saíam de fininho
rumo a alguma saleta do DOPS para anotar em fichas o que haviam conseguido em
sua perpétua luta contra os perigos do pensamento filosófico, do qual, é claro,
não entendiam coisa alguma.
Nos dias que correm, já
tivemos um ministro que gostaria de vigiar conteúdos de aula e transformar
professores em espiões de perigosos agentes da subversão, os alunos. Esse
ministro se foi, trocado por outro de igual truculência. Além disso, o
presidente anunciou o desejo de fulminar, a golpes de cortes no orçamento, o estudo
da Filosofia e da Sociologia. Vejam só: a Filosofia tem pelo menos 25 séculos
de vida e ele quer acabar com ela por decreto.
Já imaginaram a pobreza
intelectual à qual seríamos condenados?
Se, com as liberdades
vigentes, não se consegue deslanchar a educação no Brasil, o que será de nós
sob a vigilância de tipos como aquele da última fila de carteiras?
Hoje o meu dia tem um novo brilho. Meu amado professor voltaste a brilhar com esta crônica.....
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