Não direi nenhuma
novidade, pois todos sabem que vivemos, os brasileiros, aos trancos e barrancos,
na expressão feliz de Darcy Ribeiro. A cada dia, somos torpedeados por novas teorias
alarmistas, ameaças de lado a lado, fossos cavados entre as fronteiras
impossibilitando um rumo para o país. O que se entende por política se reduz a
um xingamento mútuo, governantes e militantes se comportando como moleques de
rua trocando desaforos. E os oráculos das duas facções não se cansam de colocar
mais gasolina na fogueira. Afinal, é a arma da guerra.
Algum desavisado pensaria
que os sobressaltos dessa montanha russa resultariam de alguma conjunção dos
astros, algo a ver com as fases a lua, ou, quem sabe, resultado de uma maldição
lançada pelos deuses.
Não se trata disso.
Note-se que o Jair agora
está apresentando um projeto ao Congresso, necessário, segundo ele, para o
enfrentamento dos movimentos de protesto. Para enfrentar tais ondas de protesto,
que são até agora puro delírio do Jair, o governante pretende se encher de
poderes para baixar o sarrafo nos descontentes.
A verdade é que o
presidente precisaria entender que movimentos de protestos são episódios frequentes
nas democracias, sendo detestáveis apenas aos olhos de tiranos de ópera bufa.
Vejam que na França ninguém está propondo novas legislações para trancafiar em
masmorras os gilet jaune. A
pancadaria come de lado a lado, o confronto está nas ruas, mas, terminados os
protestos, todos voltam a seus afazeres e seguem a discussão no dia a dia, até que
novo apito da panela de pressão exija nova pancadaria nas ruas.
Não é assim com o
governo do Jair. Diante da possibilidade futura de confrontos como os do Chile,
ocorreu ao Jair sacar de seu coldre de ideias curtas um decreto que aprofunda o
fosso entre governantes e governados.
Não bastasse – e
mostrando que os trancos e barrancos são planejados – o ministro Guedes chamou
para a dança o fantasmagórico AI5. O resultado foi a disparada do dólar. Alguém
acha que, com a formação de economista que o ministro tem, ele teria dito
diante de jornalistas e câmeras e microfones o que disse sem avaliar as
consequências? Como diz o povo: foi de caso pensado.
Temos aí uma série de
erros grosseiros. O mais grave sendo a ameaça do fantasma do AI5, que tem sido
inflado por quem julga que política é uma espécie de briga de boteco.
Mas a razão do uso de
tal recurso é manter de pé o anúncio de que tudo só se resolverá com um regime
ditatorial.
Tal concepção política não
é acidente ou esquisitice de ministros e governantes desorientados. É parte de um
plano muito bem urdido e conduzido com obstinação pelo Jair e seus comandados.
Em primeiro lugar,
cria-se o pânico. Os pretextos podem ser diversos, sejam as inexistentes manifestações nas ruas ou um
decreto qualquer. Em seguida, asseclas disparam ameaças de possível retaliação
dos inimigos. Acionado o alerta, os partidários ficam em prontidão enquanto
porta-vozes improvisados desmentem o que mentiram e outros desmentem as
mentiras dos desmentidos.
Guedes, ágil Pinóquio, desmentiu-se
a si mesmo, dizendo que a fala sobre o AI5 era para ficar só em off.
Despistes cujo objetivo
é de molde militar.
Por uma razão simples.
A visão de política e de governo que têm os militares é calcada no modelo da
guerra. Eles, os militares, são homens feitos e moldados para a guerra. É a
guerra que dá sentido às suas existências. A guerra é o meio no qual eles se
sentem bem. Trata-se do binarismo bélico: de um lado nós e, do outro, eles.
Mas, na ausência de
guerra e de inimigos externos, toda mentalidade autoritária converte sua
própria população em inimigo. Pois é preciso que haja um inimigo, verdadeiro ou
falso. É preciso que esse inimigo seja temível. E é preciso manter inimigos e
população em estado de guerra e de prontidão.
Uma prova claríssima
disso foi a proposta de reforma da previdência que contou com a encenação do ministro
Guedes, estufado de fúria e falta de educação, ao enfrentar o Congresso,
conseguindo produzir tumulto nas discussões, no que foi auxiliado por políticos
da assim chamada oposição. Como consequência, tanto a população como muitos
políticos ficaram atarantados, sem saber exatamente no que a tal reforma
consistia.
Como fecho final, a
aprovação da reforma pelo Congresso (com emendas que o governo não desejava),
não teve por parte dos seus defensores a comemoração apoteótica que haviam
planejado, pois Jair gostaria de uma reforma de autoria monolítica, dele e do
Guedes.
Por isso os
estrategistas do Planalto dispararam novas leis e projetos retumbantes. É
preciso, como se vê, manter o país ocupado e de prontidão.
E a paz social?
Ora, como talvez dissesse
o Conselheiro Acácio, nada mais contrário à paz do que a guerra.
Bom, nesse caso teria
toda razão.
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