terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Noivado no sofá da sala. Regina e Bolsonaro




Resultado de imagem para viúva Porcina




O noticiário político brasileiro nos passa a sensação de que poderíamos nos ocupar de coisas mais importantes. Discute-se agora se Regina Duarte deve ou não assumir um cargo no governo, não se sabe se ministério ou secretaria, a decidir. Que importância tem isso? Nenhuma, me parece.
Regina é a mesma namoradinha do Brasil, embora entrada nos setenta anos. Sorri com certo exagero diante de dias tão sombrios. Fez alguns bons trabalhos na televisão brasileira e desde algum tempo se dedicou a dar declarações retumbantes, mas ambíguas, com o que oscilava de um lado a outro no espectro político.
Agora ela se junta de corpo inteiro à série de metáforas produzidas pela mente limitada do capitão e auxiliares. Bolsonaro, na ânsia de parecer popular e dando braçadas de afogado num vocabulário limitado, não fala em alianças, negociações, composições e debates, mas em namoros, separações, brigas de família, casamentos, divórcios. Nessa trilha, diz que está noivando com a Regina Duarte.
É constrangedor. Haverá algo mais ultrapassado e arcaico do que um noivado?
Repetem os jornalistas que se trata de uma nova polêmica. Como sempre, essas tais decisões “polêmicas” do capitão são largadas no ar às vésperas de alguma viagem ou feriado para que a nação se ocupe em ruminar tais dilemas, que nada têm de polêmicos. No Brasil, onde se está produzindo um achincalhamento tenaz da língua portuguesa, agora qualquer declaração grosseira, rude, constrangedora, passa a ser “polêmica”. Não se trata disso. São apenas grosserias ou falsos problemas. Dilemas de botequim.
Então, ficamos aqui esperando o que decide a atriz ou pelo que opta o capitão. Naturalmente, nada se sabe a respeito do que eles acreditam ser os problemas da cultura brasileira.
Além disso, é difícil imaginar que, havendo algum choque de opiniões, digamos, um avanço crítico mais ousado num filme ou peça de teatro, o coronel deixará de avançar seu óbvio ódio visceral a todo e qualquer pensamento mais refinado. O que fará então a atriz? Dará um sorriso e engolirá em seco? Fará de contas que não é com ela? O capitão dará declarações de que o relacionamento emperrou, mas que, como em todos os casamentos, momentos de conflito acontecem etc. e tal. Algo desse nível.
Ora, o Brasil tem problemas sérios na chamada área da cultua. Os museus, por exemplo. Sabemos que dezenas deles estão fechados. Outros estão às moscas e ameaçam caminhar na direção em que enveredou o Museu Nacional: um incêndio lamentável.
Há a questão das bibliotecas públicas, cada vez mais largadas à deriva. Como se sabe, há um percentual enorme de escolas que não têm nada que possa ser chamado de biblioteca. Ou seja, pretende-se que alunos aprendam a língua portuguesa sem ter acesso a bibliotecas decentes.
Some-se o teatro e o cinema nacional – do qual Bolsonaro, coerentemente, só conhece a Bruna Surfistinha. Teremos aqui um debate incendiário ou não?
No entanto, tudo isso apenas bordeja a questão mais profunda: continuaremos a ter de um ministério da cultura uma ideia meramente “dirigente” e “financeira” ou seja, censora?
Ora, o dirigismo cultural é algo tão nefasto quanto a censura estatal da produção artística. Não creio que o exemplo dirigista da era PT seja um caminho viável. Mas também não creio que seu oposto poderia ser alternativa ao império de burocratas que determinam, segundo o governo de plantão, o que se deve pensar, escrever, ver ou ler. A grande vacina a todos esses disparates que passam pelas cabeças de líderes da esquerda e de direita no Brasil – aliás, cabeças robustamente ignorantes – deve ser resumida numa palavra: liberdade. Mas será que nossos pequenos Hitlers ou Lenines estarão dispostos a se eclipsarem para que a cultura floresça com toda a sua intensidade?
Quem deseja colocar cabresto em atores culturais – venha da direita ou da esquerda – vai apenas repetir o que temos sofrido há tantos governos.
Em resumo, o polêmico não é sabermos se Regina Duarte deve ou não aceitar o cargo oferecido. A polêmica é se pensar quais caminhos são viáveis para um país com 11,3 milhões de pessoas com idade acima de 15 anos classificadas como analfabetas. Em outras palavras, como e quando poderemos agir culturalmente para superar o lugar lamentável em que nos encontramos?
O Brasil é um país de múltiplas faces, tendo sido formado por gentes vindas de todos os cantos do planeta, com visões e formas de expressão as mais diversas. Tais manifestações vieram se somar ao universo cultural dos indígenas brasileiros, vítimas de um desprezo absoluto por parte do atual governo. As posições tomadas pelo capitão com relação às terras indígenas, sendo a clara manifestação do seu limite intelectual: ele não tem a menor condição de entender o outro – e cultura implica respeitar o saber do outro.
Nesse sentido, o bolsonarismo não é capaz de dar uma direção à questão cultural, que para ele só tem uma solução coerente: o extermínio.
Assim, se Regina Duarte aceita ou não o cargo, ou o repassa a qualquer outra figura da baixa sapiência televisiva nacional, a questão não se resolve. Por um motivo simples: esse não é o problema.
Daí a sensação de La nave và, mito antigo que inspirou Fellini a produzir um filme extraordinário. O Brasil, infelizmente, é um país à deriva, que boia num oceano poluído e infestado de dejetos os mais diversos. Não sabe de onde veio e não sabe para onde vai.
Regina Duarte, na melhor das hipóteses, figurará nessa nave como uma Viúva Porcina destrambelhada a disparar gargalhadas histéricas diante das idiotices produzidas à sua volta.
Já na pior das hipóteses... bom, esperemos pela próxima “polêmica”.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário