Uma síntese exemplar do que se passou em Wall Street.
segunda-feira, 28 de novembro de 2011
Deu no New York Times
Uma síntese exemplar do que se passou em Wall Street.
terça-feira, 22 de novembro de 2011
Tiro aos patinhos
Quando eu era menino, os
padres faziam muitas festas de igreja. Na minha memória aquilo era uma espécie
de circo com brincadeiras de pescaria, de jogar argolas em garrafas e do tiro
ao pato. No caso, patos de metal que vinham nadando num mar desenhado na madeira,
fazendo um barulhinho chato, o que aumentava minha vontade de acertar todos
eles. Tiro ao pato era uma diversão e tanto.
Faço esse rodeio para
lembrar aos leitores que há algum tempo deixei de falar de, digamos, política.
É preciso ter saúde de ferro para seguir os atropelos da política nacional e,
confesso, minha saúde e paciência não são grandes coisas nesse caso. Abandonei
o assunto na crença delirante de que, ao abandoná-lo, ele me deixaria em paz.
Lêdo engano, como dizia meu professor de português. Como no caso dos patos de
tiro ao alvo, novos patinhos aparecem e o tiroteio continua.
Foi quando lembrei que
os patinhos, se me divertiam, me irritavam. Eu era bom de tiro e acertava
bastante, a bala de chumbinho estalava no metal e o pato caía para trás. Mas
logo vinha outro e, em seguida, aquele que caíra voltava à cena, já refeito.
Era enervante.
Pois é assim que tenho
visto a assim chamada política nacional nos últimos tempos. Na era Lula tínhamos
os patinhos da ocasião e seus nomes curiosos – mensalão, dólares na cueca, propinoduto,
valerioduto etc. – repetindo-se sem fim ou solução. Lula era mestre em fazer de
conta que não sabia de nada. Amoitava-se e a coisa passava. Surgia o escândalo
seguinte, a polícia federal armava mais uma operação com nome retirado da
mitologia grega, e a nação seguia seu curso cambaleante.
Agora, sob Dilma, temos
um arranjo diferente, mas a dança dos patos me parece a mesma. Surge um pato,
digamos, um ministro de tal pasta, afloram as denúncias, as gravações, os
documentos, as filmagens, e a presidente diz que não é nada, intriga da
oposição, denuncismo etc. Depois, acuada, diz que os malfeitos devem ser
apurados.
Bom, deixo de lado a coisa
dos patos para confessar que me irrita isso de malfeitos. Nunca gostei de eufemismos.
Acho que existe mesmo corrupção, roubo, extorsão, bandalheira – malfeito era,
em tempos passados e mais ingênuos, aquela coisa que homens de boa lábia costumavam
fazer com donzelas indefesas. Há roubo, portanto.
Bem, diante da
artilharia, lá vem o ministro nadando feito patinho. E tome tiro. Uma semana,
duas no máximo, cai o ministro. Quer dizer que não era denuncismo gratuito e
irresponsável da oposição. Ou não?
Imagino que sim. E logo
um novo patinho aponta no canto do cenário de tiro ao alvo. Começa tudo de
novo. Não é nada, diz a presidente. Mandei apurar, diz o seu secretário. Nada
se apura, as coisas são tão evidentes que nem precisam de apuração. E lá se vai
mais um ministro.
Assim, lá se foram vários
deles enquanto que o alvo atual diz que chumbinho não o derruba, será preciso
tiro de grosso calibre. Correndo o risco de ser injusto, me parece que não
existem ministros honestos – existem ministros que ainda não foram
investigados. Mas, tal como os patinhos, os ministros voltam à cena, circulando
por aí livremente, de alguns sabemos que se tornaram assessores, conselheiros, rasputins
de aluguel.
Como se sabe, o
denunciado de ontem, que multiplicou 20 vezes o seu patrimônio, hoje é um tipo
faceiro que sai de férias e dá assessoria. Se o tipo fez tais e tantos
malfeitos, para usar a linguagem piedosa da presidente, não seria o caso de
estar respondendo a processos? Que tal algemas e cadeia?
Mas não.
O Brasil é imenso nessa
arte de perdoar, de tudo absorver, complacente ao extremo. Eu, que sou dado a
me assustar com tais coisas, dia desses liguei a televisão e vi lá um rosto
hirto, duro, um olhar de águia vingadora acima dos lábios rígidos, a gravata
larga e a voz de trovão. Tirando o cabelo, que branqueou, reconheci de
imediato: Collor, aquele, com dois eles. Dirigindo trabalhos no senado,
presidindo uma alta comissão de assuntos internacionais.
Outro, que tinha algo a
ver com dólares da cueca, exerce mandato. Outro fica em casa e goza os prazeres
da fortuna. Outros não explicaram onde foram parar as propinas, o caixa dois,
as verbas desviadas. De que adiantou terem sido defenestrados?
Tal como os patinhos,
lá vêm eles de novo. Por isso não tenho mais escrito sobre isso que chamamos de
política. É irritante. Ao menos na minha infância era possível dar um tiro nos
patinhos.
quinta-feira, 17 de novembro de 2011
Sobre a preguiça em Mário de Andrade
Ai! que divina preguiça
Roberto Gomes
Mário de Andrade tinha 25 anos quando escreveu um texto de três páginas que
publicou no jornal paulistano A Gazeta
no dia 3 de setembro de 1918. O título: A
divina preguiça. É um texto pouco citado e, desconfio, pouco lido. O que é
curioso, já que a exclamação de Macunaíma – Aí,
que preguiça! – é repetida como um bordão consagrado sempre que se fala a
respeito do herói sem nenhum caráter. O romance Macunaíma foi publicado em 1928, portanto Mário teve pelo menos dez
anos para virar e revirar em sua mente as idéias que lançou no artigo em que sintetiza
uma crítica ao trabalho, um elogio do ócio e uma divinização da preguiça. Mas
não se trata de qualquer preguiça, nem de qualquer ócio ou de qualquer trabalho.
A data em que o artigo foi publicado é importante, pois na Europa a I
Guerra Mundial ainda rugia – terminaria dentro de três meses. O horizonte a
partir do qual Mário enfoca a questão são os descaminhos que levaram à guerra e
os princípios segundo os quais se pensa a civilização. Por isso o artigo inicia
lembrando a oposição que habitualmente é feita entre momentos “de progresso, de
estacionamento e de eras em que a civilização volta atrás”, equívoco que Mário
combate. “Na passagem das civilizações – diz ele – como na própria vida, tudo é
marchar”.
Um dos sintomas desses descaminhos, anteriores “ao famigerado agosto de 1914” , ele vai encontrar, num
corte cirúrgico, nas práticas cientificistas da época. Ou, nas suas palavras:
“a propensão que tinham os cientistas de explicar as faltas e os vícios dos
homens por meio de doenças e de atavismo”. Entre tais faltas e vícios destaca-se
a preguiça, espécie de avesso de um mundo em progresso e movimento constante,
com o acúmulo de riquezas e de novas tecnologias de dominação do homem e do
mundo. O projeto capitalista precisava de ação e produção – motivo pelo qual a
preguiça deveria ser acusada de vício, senão de crime. E os “cientistas” – mais
precisamente os psiquiatras – se prestaram de imediato a esse papel.
Mário, “folheando as eruditas paginas de Austregésilo sobre a ‘Preguiça
patológica’”, ri dos cientistas. Lembra que a loucura, ao longo da história,
teria sido para alguns um dom divino e para outros um pecado mortal; agora,
estaria acuada, “reduzida a um morbo de nova espécie!”
A preguiça deixa de ter a nobreza vinda dos deuses e o peso trágico
derivado das misérias humanas. Perdeu a grandeza. Já não seria possível
agradecer seu usufruto aos deuses ou penitenciar-se nos confessionários. “Sem
regalo nem culpa, resumia-se a uma doença!” Os preguiçosos eram doentes sem
grandeza e nada se esperava deles ou da preguiça. Toda “mandranice” se reduzia
ao “mesmo morbo”.
É interessante como, no início do século, Mário desenvolve uma análise
que só será pensada plenamente após a década de 1960, quando se tomará
consciência dos mecanismos através dos quais o que ameaça ou contradiz o
projeto capitalista deverá ser apontado como entrave à disciplina dos corpos. Isso
só se ouvirá com Marcuse, Foucault etc. Há antecedentes, é claro. Um deles, O direito à preguiça, publicado em 1848,
de Paul Lafargue, genro gaiato de Karl Marx. E vale lembrar que, em 1882,
Machado de Assis, no notável O Alienista,
havia apontado o exercício de poder que parece umbilicalmente colado ao
discurso científico. A fabricação do louco, em Machado de Assis, passa pelo
exercício de poder do psiquiatra positivista.
Mário e Machado estão, nesse caso, décadas antes de seu tempo.
Assim, reduzida a uma doença, a preguiça deve ser calada. E curada,
talvez em estações de águas. Depois dessa terapia, ironiza Mário: “a humanidade
voltaria ao labutar diuturno da vida!”
Mário ressalta que em diferentes momentos da história a preguiça foi
vista de forma diversa. Na Grécia, por exemplo, e em Roma. O ócio era aí
respeitado, pois se sabia que era a partir dele que os poetas e filósofos
criavam literatura e pensamento. O conhecimento, seja na geometria ou na
engenharia, precisava não apenas de mão-de-obra e de muito suor, mas também de
quem pudesse resolver questões aparentemente desvinculadas de qualquer
aplicação prática. Como se sabe, os gregos tinham grande desprezo pelos
trabalhos manuais, o que lhes edra permitido por uma sociedade escravocrata. E
sabiam que, ao se tornarem livres do trabalho servil, os homens se tornaram capazes
de criar artes plásticas ou literárias, ciência e conhecimento. Aristóteles e
Platão assinalam com clareza o papel do ócio na criação artística e filosófica.
Mário pensa da mesma forma ao dizer que a arte “nasceu porventura dum bocejo
sublime” e o “belo e a arte são a descendência que perpetua e enaltece o ócio”.
Com o cristianismo – que, contrariamente ao escravismo grego e romano,
postula a igualdade teórica entre todos os homens, filhos e imagem de um mesmo
Deus – a preguiça vai sofrer um deslocamento. Foi transformada em pecado. “Mas,
diz Mário, já não é a mesma preguiça”. Ela é um vício quando se torna
enfraquecimento, tibieza, o abandono das “lutas e das porfias”. Essa “inércia
lânguida” é a porta aberta aos pecados. É isso que o cristianismo combate, mas
devemos lembrar que, no isolamento dos mosteiros, monges se dedicam a longos
momentos de reflexão, produzindo textos religiosos, filosóficos, copiando e
ilustrando textos, reinventando a pintura, o conhecimento, até alcançar os
patamares a que chegou a filosofia e a pintura no século XIII.
A necessidade de se sentir livre do trabalho servil é essencial, sabem os
medievais, para a geração do conhecimento, tanto que esse irá renascer quando o
fundamentalismo dos primeiros séculos se abrandar. O Renascimento recuperará o
ideal clássico grego ao final desse longo processo.
Mário, diante dos desastres da guerra – movida por ambição, ganância e
desejo de poder – se recusa a abrir mão da preguiça. “Mil vezes não!” exclama
ele. Justamente nesse momento em que se anseia pelo seu fim, poderá ocorrer a
transformação civilizatória “para que o idealismo floresça e as ilusões
fecundem”. Seria o “Sésamo, abre-te” do qual ele fala.
Portanto, nada de dar ouvidos aos “psiquiatras” que “querem trazer à
preguiça mais essa qualificação de doentia, redimindo os ócios culposos,
vulgarizando os ócios salutares! Revoltemo-nos! A preguiça não pode ser
reduzida a uma doença!”
A preguiça tem um papel fundamental a desempenhar, portanto. A divina
preguiça, criadora, bocejo sublime, será a parteira dos novos tempos.
No entanto, se Mário escrevesse, não em 27 de agosto de 1918, mas nessa
morna quinta-feira de 19 de novembro de 2009, penso que ele teria um problema a
mais.
Hoje circula muita desconversa a respeito do assunto. O chamado mundo
corporativo – que se apropriou de algumas categorias com as quais a filosofia
pensou a questão do trabalho e do ócio – vulgariza um discurso que,
desinteressado do verdadeiro ócio e da divina preguiça, busca transformar trabalhadores
em criaturas maleáveis, acomodadas às felicidades do consumo, ao projeto de ganhar
mais, ter prestígio e sucesso. Enfim, ócio incorporado à produção.
Trata-se de uma perversão da divina preguiça. Imagino que Mário de
Andrade reclamaria. É preciso estar alerta: o ócio e a preguiça têm um valor
absoluto, caso contrário se perdem como instrumento de manipulação nas mãos de
quem manda.
A divina preguiça injeta, nas ações humanas, um antídoto contra toda servidão
ao trabalho. É o espaço aberto à criatividade, à liberdade, capaz de dar aos
homens a sensação de plenitude que só o reencontro de si mesmo pode proporcionar.
Sem lucros e sem utilidades oportunistas – apenas pela realização do que há de
melhor no ser humano. Pouco importa que seja exercida no domínio da técnica, da
ciência, das artes ou do conhecimento de si mesmo, aquilo que os gregos
chamavam de autonomia.
Eis onde nos levam as intuições geniais que Mário de Andrade lançou em
seu artigo de 1918.
Agora, se alguém ainda dirige à preguiça ou ao ócio um olhar de
desconfiança, lembro mais um paradoxo: não é fácil encontrarmos quem tenha trabalhado
mais do que Mário de Andrade. Ou quem trabalhou mais do que Picasso ou Paster.
Mas é um trabalho de outra ordem – erotizado, como diria Marcuse anos
mais tarde, em 1955, ou, “no convívio da divina Preguiça”, como escreveu Mário
naquele distante ano de 1918.
terça-feira, 15 de novembro de 2011
A divina preguiça - Mário de Andrade
Em postagem seguinte, publico um artigo que escrevi sobre esse texto de Mário de Andrade, saído originalmente no jornal Gazeta do Povo, de Curitiba, em novembro de 2009. Nele procuro mostrar o caráter precursor e ainda não superado das ideias de Mário de Andrade sobre a preguiça, que equivalem a uma teoria da arte e a um questionamento profundo do tal "espírito do capitalismo".
A divina preguiça
Mario
de Morais Andrade
(São Paulo, 27 de agosto)
Publicado no jornal “A Gazeta” (São Paulo, 03/09/1918, Anno XIII – num.
3790)
Aquelles que asseveram ter a humanidade éras de progresso, de
estacionamento e éras em que a civilização volta atrás, laboram num ligeiro
desvio de concepção e numa comprehensão menos exacta da synonymia das palavras.
Na passagem das civilizações, como na própria vida, tudo é marchar, buscando um
horizonte dianteiro inattingível. A destruição é, como a criação, uma
necessidade dessa marcha que impulsiona os homens.
A água emergida da fonte não mais tornará á balsa agreste onde surgiu:
será riacho, ribeirão depois, depois caudal... Na história dos homens tudo é
progresso; apenas esse progresso trilha por vezes descaminhos, perlustra as
sombras dos mattagaes, em vez de, num anceio alevantado, seguir recto para os
horizontes onde pompeia o Sol.
Não se poderá dizer, sem receios de pesado errar, que a civilização
perlongasse (antes da Guerra) esse caminho que vai ter á luz. Digo antes da
guerra, porque é certo que o pampeiro das metralhas, o holocausto dos homens
moços pela Grande Causa varrerem o futuro dos bulcoes que o ensombravam; e a
humanidade que sobrevier sentirá mais incentivos no desejo, mais enthusiasmos
na inspiração.
Um dos symptomas desse descaminho anterior ao famigerado agosto de 1914,
era a propensão que tinham os scientistas de explicar as faltas e os vícios dos
homens por meio de doenças e de atavismo. Reduziam o humano a um joão-minhoca
ainda menos interessante e elevado que o da concepção pessimista de Pierre
Wolf.
Os philosophos germânicos, organizados na mais increnque pirataria
intellectual de que jamais houve exemplo, tinham surrupiado e escondido nas
sáxeas cavenas das suas philosohias aquelle mesmo trigo das virtudes “ceifado
ao campo do bom senso antigo”. De que nos fala Raymundo. A guerra será talvez o
“Sésamo, abre-te” dessas lapas vertiginosas.
Pensava assim, dentro commigo, folheando as eruditas paginas de
Austregésilo sobre a “Preguiça pathologica... Não me assitou cem lel-las, a
gargalhada dos deuses de Homero, mas confesso ter-me encrespado os lábios o
sorriso das figuras de Da Vinci. Mais uma illusão que nos querem tirar! A
preguiça que para uns fora dom dons deuses e para outros peccado mortal, eil-a
reduzida a um morbo de nova espécie! Não poderíamos mais gozar dos nossos
lazeres, agradecendo-os aos deuses, nem inculpar as nossas acedias preguiçosas,
só remíveis no gradil dos confessionários!... Não; nem gozar com aquelles, nem
sofrer com estas: a preguiça não era nem regalo nem culpa, resumia-se a uma
doença! Todos os preguiçosos seriam outros tantos doentes!... E eu tive como
que um visão nova do mundo: via a Terra, modorrada ao calor, redondinha,
vestida dum immenso gramado esmeraldino sobre o qual a humanidade intensa se
deitára, chapéos nos olhos, mãos nas cavas dos colletes, pausas pantagruelicas
culminando no espaço, a dormir, a dormir serenamente, num gigantesco, universal
convescote.
Nem gozar, nem soffrer! Não se lhe poderia increpar a mandranice, nem
exaltar a felicidade dos ocios: todos soffriam o contagio do mesmo morbo! E a
uma receita de doutor de dois mezes de estação de águas, sarada e firme, a
humanidade voltaria ao labutar diuturno da vida!
*****
A preguiça teve sempre, conforme o sentido em que foi tomada, modulações
varias. Cada época e cada religião, acceitando e comprehendendo a preguiça
segundo seu modo de ver, decantara-a ou a repulsara. Na Grecia e na Roma de
apogeus incontrastáveis, apesar de terem sido estádios de continuas atividade,
onde mais se accentuava o prurido dos ideaes, a anciãs da perfeição, ella foi
apreciada e divinizada quase. Tempos de formoso trabalho, onde as saúdes
abundavam de seiva, onde as intelligencias eram mais geniaes e as riquezas mais
plethoricas, foi-lhe dado imprimir a quase todas as artes plásticas ou
literárias o impulso que fez com que ellas attingissem a portentosa serenidade
na força e a suprema belleza na verdade. A arte que – como explica Reinach – é
mais ou menos um luxo, differenciando-se, entre outros, por esse caráter
especial das outras manifestações da actividade humana, não poderia
desenvolver-se e alcançar o seu fastigio sinão em meio das riquezas que
prestigiaram as collinas de Hellade e os serros mansos de Roma. A arte nasceu
porventura dum bocejo sublime, assim como o sentimento do bello deve ter
surgido duma contemplação ociosa da natureza. O bello e a arte são a
descendência que perpetua e enaltece o ócio; e os próprios philosophos
hellenicos, nas suas preguiças illuminadas, esmagando ao peso das sandálias de
areia especular dos seus jardins, gostavam de repousar os olhos nos mármores
intemeratos, no verde polycromico das relvas e vergeis, na palpitação das
carnações sadias.
O christianismo, comprehendendo mais humana e verdadeiramente a vida, fez
da preguiça um pecado... Mas já não é a mesma preguiça. O vicio que o
christianismo repulsa é o que conclue pelo abandono das luctas e das porfias, a
que nunca refugiram os governados de Péricles. O preguiçoso que o christianismo
indigita é o que se avilta na inércia lânguida – porta aberta aos pecados
mortaes. O preguiçoso do paganismo é como o Titero de Virgilio que, derreado á
sombra das balseiras, olhava as suas vacas pascerem longe, tangendo na avena
ruda; ou é como o calmo Petrônio, que vagava pelas ruas de Roma, entrando os
mercados onde se expunham virgens nuas, ouvindo as intrigas no Forum,
descobrindo as ambições dos Eumólpios, para legar aos homens do porvir as
paginas vivazes do Satiricon, a chronica mais perfeita dos romanos da
decadencia.
Para nossos indígenas as almas, libertadas do invólucro da carne, iriam,
também repousar, lá do outro lado dos Andes, num ócio gigantesco. É a mesma
concepção do Eldorado, de Poe, existente além do valle da sombra, que inspirou
Baudelaire, Antonio Nobre e o nosso Alberto, nos alexandrinos lapidares de
“Longe... mais longe ainda!”
Mas eis que os psychiatras querem trazer á preguiça mais essa
qualificação de doentia; redimindo os ocios culposos, vulgarizando os ocios
salutares!... Revoltemo-nos! A preguiça não pode ser reduzida a uma doença! Si
algumas vezes é o resultado passageiro duma lesão, não poderá jámais misturar
todos os preguiçosos num só caso de observação clinica!
Mil vezes não! Forçoso é continuar, para que o idealismo floresça e as
illusões fecundem, a castigar os que se aviltam no “far niente” burguês e
vicioso e a exalçar os que comprehenderam e sublimaram as artes, no convívio da
divina Preguiça!
segunda-feira, 7 de novembro de 2011
Entrevista à TV Educativa - O conhecimento de Anatol Kraft
O programa Caldo de Cultura, da Televisão Educativa do Paraná, entrevistou o escritor Roberto Gomes e o editor Naotake Fukushima a propósito do lançamento do romance O conhecimento de Anatol Kraft.
Para assistir, clique aqui
Caminhos de uma noite escura
O homem era pequeno e
gordo, mas parecia sólido. Um objeto redondo e forte. Os braços eram curtos, as
mãos eram grandes, o jeito de andar denunciava que estava cansado ou vencido
por alguma dor que desistira controlar. Movia-se com lentidão, não pelo cansaço,
mas por alguma determinação à qual se submetia.
Carregava um saco
plástico grande e negro, rebelde às suas tentativas de mantê-lo sobre os ombros.
O saco despencava para os lados a todo momento. Por isso ele dava solavancos
com os ombros, sacudindo vigorosamente a perna direita num chute brusco – o
saco ia para o lugar e ele andava uns metros. Logo a aflição recomeçava: o saco
deslizava, o homem dava um chute no ar e tudo se arranjava por alguns passos.
Gastara vários minutos,
talvez uns vinte, para ajeitar o que colocara dentro do saco. Parado ao lado da
caixa coletora de lixo do condomínio, foi escolhendo o que era de seu
interesse. Latas, via-se pelo brilho súbito. Mas também papéis, papelão, objetos
de plástico. Garrafas. O saco aumentava de volume e se deformava, enquanto o homem
lhe dava bofetões de um lado e outro para que se ajeitasse. Gastou nisso os
vinte minutos, depois fechou a caixa de lixo e lutou para colocar o saco nas
costas, no que gastou algum tempo, pois precisou devolver duas vezes o saco ao
chão, ajeitar algo dentro dele, chutá-lo com alguma irritação de um dos lados e
sacudí-lo com raiva para que tudo se arranjasse dentro dele. Ao final, se
plantou de pernas abertas diante de sua obra e a observou com ares de desafio.
De um só golpe, agarrou a boca do saco e o jogou sobre os ombros.
Devia ser pesado. Deu
um passo para a direita, outro para a esquerda e pareceu avaliar o seu destino.
Súbito, deu um arranque e subiu a rua, certamente o caminho mais difícil.
Vindo de uma rua
lateral, o primeiro rapaz, camuflado na escuridão da rua, passou ao lado dele e
parou para observá-lo. Outro rapaz surgiu, pilotando um skate, e não teve tempo
de desviar. Fez uma manobra brusca e trombou no braço do homem, que deu um
berro e rodopiou, largando o saco no chão.
O homem esbravejou, os
braços pequenos ergueram as mãos enormes, e disse vários palavrões.
Os dois rapazes apenas
olharam para ele, sem reagir.
O homem ameaçou avançar
sobre eles, mas parou quando eles ficaram um de cada lado, esperando o ataque e
prontos para se defender.
Disse outros palavrões,
agarrou o saco com raiva e o jogou sobre o ombro. Foi quando dois outros
rapazes chegaram de bicicleta.
Agora estava cercado.
Os rapazes conversaram
em voz baixa, olhando para ele.
O homem estufou o
peito, deixou o braço esquerdo bem aberto, como se fosse uma arma perigosa, e
deu um passo. Os rapazes aproximaram-se. Ele deu um giro para olhar cada um
deles, mas não se moveu do lugar.
As bicicletas avançaram
em sua direção. Tiraram um fino, uma de cada lado, e ele, assustado, mal
conseguiu se manter de pé. Socou o ar e rosnou, engolindo certamente algum
palavrão. Foi quando o outro rapaz atingiu suas costas com o skate, derrubando
o saco.
Pelo chão ficaram
esparramados papéis, papelões, plásticos e algumas garrafas, Uma delas quicou
no asfalto e quebrou. O homem avançou sobre um pedaço da garrafa e o empunhou
como se fosse um punhal. Já não falava nem dizia palavrões. Com a mão esquerda
fazia gestos desafiando que viessem. A mão direita empunhava a arma.
Os rapazes riram. Um
deles imitou seu gesto segurando o pedaço de garrafa. Outro fingiu que tremia
de medo. Puseram-se a girar em torno dele, aos gritos, enquanto ele tentou
atingi-los com golpes inúteis até cair no chão. Antes de sumir pela mesma rua de
onde haviam surgido, os rapazes deram chutes nos papéis, papelões e garrafas.
Depois se foram às gargalhadas.
O homem custou a se
levantar. A mão com a qual segurara a garrafa estava cortada e sangrava. Tirou
um pano sujo do bolso e embrulhou a mão. Levantou-se. Recolheu tudo que se
espalhara no asfalto. Levou nisso mais de vinte minutos. Tudo terminado, deu um
solavanco, um golpe com a perna direita e recolocou a carga nos ombros.
Poderia descer rua
abaixo, mas preferiu a direção contrária, que no entanto parecia a mais
difícil.
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