Publiquei esse texto - Ai! que divina preguiça - no jornal Gazeta do Povo, Curitiba, em novembro de 2009. Ele é reproduzido aqui, acompanhando a postagem do ensaio de Mário de Andrade, A divina preguiça, para dar destaque e divulgação a uma das reflexões mais originais do pensamento brasileiro, anunciadora do que só seria discutido anos mais tarde. Mário foi nesse caso um visionário.
Ai! que divina preguiça
Roberto Gomes
Mário de Andrade tinha 25 anos quando escreveu um texto de três páginas que
publicou no jornal paulistano A Gazeta
no dia 3 de setembro de 1918. O título: A
divina preguiça. É um texto pouco citado e, desconfio, pouco lido. O que é
curioso, já que a exclamação de Macunaíma – Aí,
que preguiça! – é repetida como um bordão consagrado sempre que se fala a
respeito do herói sem nenhum caráter. O romance Macunaíma foi publicado em 1928, portanto Mário teve pelo menos dez
anos para virar e revirar em sua mente as idéias que lançou no artigo em que sintetiza
uma crítica ao trabalho, um elogio do ócio e uma divinização da preguiça. Mas
não se trata de qualquer preguiça, nem de qualquer ócio ou de qualquer trabalho.
A data em que o artigo foi publicado é importante, pois na Europa a I
Guerra Mundial ainda rugia – terminaria dentro de três meses. O horizonte a
partir do qual Mário enfoca a questão são os descaminhos que levaram à guerra e
os princípios segundo os quais se pensa a civilização. Por isso o artigo inicia
lembrando a oposição que habitualmente é feita entre momentos “de progresso, de
estacionamento e de eras em que a civilização volta atrás”, equívoco que Mário
combate. “Na passagem das civilizações – diz ele – como na própria vida, tudo é
marchar”.
Um dos sintomas desses descaminhos, anteriores “ao famigerado agosto de 1914” , ele vai encontrar, num
corte cirúrgico, nas práticas cientificistas da época. Ou, nas suas palavras:
“a propensão que tinham os cientistas de explicar as faltas e os vícios dos
homens por meio de doenças e de atavismo”. Entre tais faltas e vícios destaca-se
a preguiça, espécie de avesso de um mundo em progresso e movimento constante,
com o acúmulo de riquezas e de novas tecnologias de dominação do homem e do
mundo. O projeto capitalista precisava de ação e produção – motivo pelo qual a
preguiça deveria ser acusada de vício, senão de crime. E os “cientistas” – mais
precisamente os psiquiatras – se prestaram de imediato a esse papel.
Mário, “folheando as eruditas paginas de Austregésilo sobre a ‘Preguiça
patológica’”, ri dos cientistas. Lembra que a loucura, ao longo da história,
teria sido para alguns um dom divino e para outros um pecado mortal; agora,
estaria acuada, “reduzida a um morbo de nova espécie!”
A preguiça deixa de ter a nobreza vinda dos deuses e o peso trágico
derivado das misérias humanas. Perdeu a grandeza. Já não seria possível
agradecer seu usufruto aos deuses ou penitenciar-se nos confessionários. “Sem
regalo nem culpa, resumia-se a uma doença!” Os preguiçosos eram doentes sem
grandeza e nada se esperava deles ou da preguiça. Toda “mandranice” se reduzia
ao “mesmo morbo”.
É interessante como, no início do século, Mário desenvolve uma análise
que só será pensada plenamente após a década de 1960, quando se tomará
consciência dos mecanismos através dos quais o que ameaça ou contradiz o
projeto capitalista deverá ser apontado como entrave à disciplina dos corpos. Isso
só se ouvirá com Marcuse, Foucault etc. Há antecedentes, é claro. Um deles, O direito à preguiça, publicado em 1848,
de Paul Lafargue, genro gaiato de Karl Marx. E vale lembrar que, em 1882,
Machado de Assis, no notável O Alienista,
havia apontado o exercício de poder que parece umbilicalmente colado ao
discurso científico. A fabricação do louco, em Machado de Assis, passa pelo
exercício de poder do psiquiatra positivista.
Mário e Machado estão, nesse caso, décadas antes de seu tempo.
Assim, reduzida a uma doença, a preguiça deve ser calada. E curada,
talvez em estações de águas. Depois dessa terapia, ironiza Mário: “a humanidade
voltaria ao labutar diuturno da vida!”
Mário ressalta que em diferentes momentos da história a preguiça foi
vista de forma diversa. Na Grécia, por exemplo, e em Roma. O ócio era aí
respeitado, pois se sabia que era a partir dele que os poetas e filósofos
criavam literatura e pensamento. O conhecimento, seja na geometria ou na
engenharia, precisava não apenas de mão-de-obra e de muito suor, mas também de
quem pudesse resolver questões aparentemente desvinculadas de qualquer
aplicação prática. Como se sabe, os gregos tinham grande desprezo pelos
trabalhos manuais, o que lhes edra permitido por uma sociedade escravocrata. E
sabiam que, ao se tornarem livres do trabalho servil, os homens se tornaram capazes
de criar artes plásticas ou literárias, ciência e conhecimento. Aristóteles e
Platão assinalam com clareza o papel do ócio na criação artística e filosófica.
Mário pensa da mesma forma ao dizer que a arte “nasceu porventura dum bocejo
sublime” e o “belo e a arte são a descendência que perpetua e enaltece o ócio”.
Com o cristianismo – que, contrariamente ao escravismo grego e romano,
postula a igualdade teórica entre todos os homens, filhos e imagem de um mesmo
Deus – a preguiça vai sofrer um deslocamento. Foi transformada em pecado. “Mas,
diz Mário, já não é a mesma preguiça”. Ela é um vício quando se torna
enfraquecimento, tibieza, o abandono das “lutas e das porfias”. Essa “inércia
lânguida” é a porta aberta aos pecados. É isso que o cristianismo combate, mas
devemos lembrar que, no isolamento dos mosteiros, monges se dedicam a longos
momentos de reflexão, produzindo textos religiosos, filosóficos, copiando e
ilustrando textos, reinventando a pintura, o conhecimento, até alcançar os
patamares a que chegou a filosofia e a pintura no século XIII.
A necessidade de se sentir livre do trabalho servil é essencial, sabem os
medievais, para a geração do conhecimento, tanto que esse irá renascer quando o
fundamentalismo dos primeiros séculos se abrandar. O Renascimento recuperará o
ideal clássico grego ao final desse longo processo.
Mário, diante dos desastres da guerra – movida por ambição, ganância e
desejo de poder – se recusa a abrir mão da preguiça. “Mil vezes não!” exclama
ele. Justamente nesse momento em que se anseia pelo seu fim, poderá ocorrer a
transformação civilizatória “para que o idealismo floresça e as ilusões
fecundem”. Seria o “Sésamo, abre-te” do qual ele fala.
Portanto, nada de dar ouvidos aos “psiquiatras” que “querem trazer à
preguiça mais essa qualificação de doentia, redimindo os ócios culposos,
vulgarizando os ócios salutares! Revoltemo-nos! A preguiça não pode ser
reduzida a uma doença!”
A preguiça tem um papel fundamental a desempenhar, portanto. A divina
preguiça, criadora, bocejo sublime, será a parteira dos novos tempos.
No entanto, se Mário escrevesse, não em 27 de agosto de 1918, mas nessa
morna quinta-feira de 19 de novembro de 2009, penso que ele teria um problema a
mais.
Hoje circula muita desconversa a respeito do assunto. O chamado mundo
corporativo – que se apropriou de algumas categorias com as quais a filosofia
pensou a questão do trabalho e do ócio – vulgariza um discurso que,
desinteressado do verdadeiro ócio e da divina preguiça, busca transformar trabalhadores
em criaturas maleáveis, acomodadas às felicidades do consumo, ao projeto de ganhar
mais, ter prestígio e sucesso. Enfim, ócio incorporado à produção.
Trata-se de uma perversão da divina preguiça. Imagino que Mário de
Andrade reclamaria. É preciso estar alerta: o ócio e a preguiça têm um valor
absoluto, caso contrário se perdem como instrumento de manipulação nas mãos de
quem manda.
A divina preguiça injeta, nas ações humanas, um antídoto contra toda servidão
ao trabalho. É o espaço aberto à criatividade, à liberdade, capaz de dar aos
homens a sensação de plenitude que só o reencontro de si mesmo pode proporcionar.
Sem lucros e sem utilidades oportunistas – apenas pela realização do que há de
melhor no ser humano. Pouco importa que seja exercida no domínio da técnica, da
ciência, das artes ou do conhecimento de si mesmo, aquilo que os gregos
chamavam de autonomia.
Eis onde nos levam as intuições geniais que Mário de Andrade lançou em
seu artigo de 1918.
Agora, se alguém ainda dirige à preguiça ou ao ócio um olhar de
desconfiança, lembro mais um paradoxo: não é fácil encontrarmos quem tenha trabalhado
mais do que Mário de Andrade. Ou quem trabalhou mais do que Picasso ou Paster.
Mas é um trabalho de outra ordem – erotizado, como diria Marcuse anos
mais tarde, em 1955, ou, “no convívio da divina Preguiça”, como escreveu Mário
naquele distante ano de 1918.
Roberto, havia lido sua crônica em 2009: agora veio acompanhada do texto de Mário de Andrade, o que permite verificar a justeza e pertinência de suas observações sobre uma das intuições do grande modernista e, ao mesmo tempo, comprovar que ele tinha uma percepção aguda do que acontecia ou estava para acontecer. Aliás, você nos deixa alertas para outras possibilidades em relação aos textos de juventude de Mário de Andrade: a) quantos textos dele ainda desconhecidos ocultam, em forma embrionária, outras ideias somente mais tarde desenvolvidas por filósofos, estetas e cientistas e mesmo teóricos da literatura? quantas crônicas do autor de Macunaíma, algumas admiráveis, ainda estão para ser lidas com sensibilidade e rigor (como você faz agora), podendo, assim, desvendar as contribuições que ele deu para a psicologia, para a sociologia da cultura, para a filosofia da arte, para a estética da recepção e para os tão exaltados hoje "estudos culturais"?
ResponderExcluirParabéns, Roberto, pelo achado d'A Divina Preguiça e por ter mostrado a contemporaneidade que você percebeu nela.
Genial, professor Roberto Gomes. Penso assim: Ah se as pessoas tivessem apenas um trabalho servil de seis horas diárias, nestes tempos modernos! As outras horas seriam para se viver a vida de verdade: ler, ver o mundo, a natureza, bater papos, visitar bibliotecas, passear simplesmente ou ficar em casa, numa rede, a pensar sobre estrelas!... Mas não. Querem-nos escravos das horas! Depois das horas de trabalho não se tem mais tempo pra nada, a não ser perceber-se esgotado, destruído em seus sonhos, acabrunhado e se preparando para o outro dia das mesmices.
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