quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Sobre a preguiça em Mário de Andrade


Mário de AndradePubliquei esse texto - Ai! que divina preguiça - no jornal Gazeta do Povo, Curitiba, em novembro de 2009. Ele é reproduzido aqui, acompanhando a postagem do ensaio de Mário de Andrade, A divina preguiça, para dar destaque e divulgação a uma das reflexões mais originais do pensamento brasileiro, anunciadora do que só seria discutido anos mais tarde. Mário foi nesse caso um visionário.








Ai! que divina preguiça

Roberto Gomes


Mário de Andrade tinha 25 anos quando escreveu um texto de três páginas que publicou no jornal paulistano A Gazeta no dia 3 de setembro de 1918. O título: A divina preguiça. É um texto pouco citado e, desconfio, pouco lido. O que é curioso, já que a exclamação de Macunaíma – Aí, que preguiça! – é repetida como um bordão consagrado sempre que se fala a respeito do herói sem nenhum caráter. O romance Macunaíma foi publicado em 1928, portanto Mário teve pelo menos dez anos para virar e revirar em sua mente as idéias que lançou no artigo em que sintetiza uma crítica ao trabalho, um elogio do ócio e uma divinização da preguiça. Mas não se trata de qualquer preguiça, nem de qualquer ócio ou de qualquer trabalho.
A data em que o artigo foi publicado é importante, pois na Europa a I Guerra Mundial ainda rugia – terminaria dentro de três meses. O horizonte a partir do qual Mário enfoca a questão são os descaminhos que levaram à guerra e os princípios segundo os quais se pensa a civilização. Por isso o artigo inicia lembrando a oposição que habitualmente é feita entre momentos “de progresso, de estacionamento e de eras em que a civilização volta atrás”, equívoco que Mário combate. “Na passagem das civilizações – diz ele – como na própria vida, tudo é marchar”.
Um dos sintomas desses descaminhos, anteriores “ao famigerado agosto de 1914”, ele vai encontrar, num corte cirúrgico, nas práticas cientificistas da época. Ou, nas suas palavras: “a propensão que tinham os cientistas de explicar as faltas e os vícios dos homens por meio de doenças e de atavismo”. Entre tais faltas e vícios destaca-se a preguiça, espécie de avesso de um mundo em progresso e movimento constante, com o acúmulo de riquezas e de novas tecnologias de dominação do homem e do mundo. O projeto capitalista precisava de ação e produção – motivo pelo qual a preguiça deveria ser acusada de vício, senão de crime. E os “cientistas” – mais precisamente os psiquiatras – se prestaram de imediato a esse papel.
Mário, “folheando as eruditas paginas de Austregésilo sobre a ‘Preguiça patológica’”, ri dos cientistas. Lembra que a loucura, ao longo da história, teria sido para alguns um dom divino e para outros um pecado mortal; agora, estaria acuada, “reduzida a um morbo de nova espécie!”
A preguiça deixa de ter a nobreza vinda dos deuses e o peso trágico derivado das misérias humanas. Perdeu a grandeza. Já não seria possível agradecer seu usufruto aos deuses ou penitenciar-se nos confessionários. “Sem regalo nem culpa, resumia-se a uma doença!” Os preguiçosos eram doentes sem grandeza e nada se esperava deles ou da preguiça. Toda “mandranice” se reduzia ao “mesmo morbo”.
É interessante como, no início do século, Mário desenvolve uma análise que só será pensada plenamente após a década de 1960, quando se tomará consciência dos mecanismos através dos quais o que ameaça ou contradiz o projeto capitalista deverá ser apontado como entrave à disciplina dos corpos. Isso só se ouvirá com Marcuse, Foucault etc. Há antecedentes, é claro. Um deles, O direito à preguiça, publicado em 1848, de Paul Lafargue, genro gaiato de Karl Marx. E vale lembrar que, em 1882, Machado de Assis, no notável O Alienista, havia apontado o exercício de poder que parece umbilicalmente colado ao discurso científico. A fabricação do louco, em Machado de Assis, passa pelo exercício de poder do psiquiatra positivista.
Mário e Machado estão, nesse caso, décadas antes de seu tempo.
Assim, reduzida a uma doença, a preguiça deve ser calada. E curada, talvez em estações de águas. Depois dessa terapia, ironiza Mário: “a humanidade voltaria ao labutar diuturno da vida!”
Mário ressalta que em diferentes momentos da história a preguiça foi vista de forma diversa. Na Grécia, por exemplo, e em Roma. O ócio era aí respeitado, pois se sabia que era a partir dele que os poetas e filósofos criavam literatura e pensamento. O conhecimento, seja na geometria ou na engenharia, precisava não apenas de mão-de-obra e de muito suor, mas também de quem pudesse resolver questões aparentemente desvinculadas de qualquer aplicação prática. Como se sabe, os gregos tinham grande desprezo pelos trabalhos manuais, o que lhes edra permitido por uma sociedade escravocrata. E sabiam que, ao se tornarem livres do trabalho servil, os homens se tornaram capazes de criar artes plásticas ou literárias, ciência e conhecimento. Aristóteles e Platão assinalam com clareza o papel do ócio na criação artística e filosófica. Mário pensa da mesma forma ao dizer que a arte “nasceu porventura dum bocejo sublime” e o “belo e a arte são a descendência que perpetua e enaltece o ócio”.
Com o cristianismo – que, contrariamente ao escravismo grego e romano, postula a igualdade teórica entre todos os homens, filhos e imagem de um mesmo Deus – a preguiça vai sofrer um deslocamento. Foi transformada em pecado. “Mas, diz Mário, já não é a mesma preguiça”. Ela é um vício quando se torna enfraquecimento, tibieza, o abandono das “lutas e das porfias”. Essa “inércia lânguida” é a porta aberta aos pecados. É isso que o cristianismo combate, mas devemos lembrar que, no isolamento dos mosteiros, monges se dedicam a longos momentos de reflexão, produzindo textos religiosos, filosóficos, copiando e ilustrando textos, reinventando a pintura, o conhecimento, até alcançar os patamares a que chegou a filosofia e a pintura no século XIII.
A necessidade de se sentir livre do trabalho servil é essencial, sabem os medievais, para a geração do conhecimento, tanto que esse irá renascer quando o fundamentalismo dos primeiros séculos se abrandar. O Renascimento recuperará o ideal clássico grego ao final desse longo processo.
Mário, diante dos desastres da guerra – movida por ambição, ganância e desejo de poder – se recusa a abrir mão da preguiça. “Mil vezes não!” exclama ele. Justamente nesse momento em que se anseia pelo seu fim, poderá ocorrer a transformação civilizatória “para que o idealismo floresça e as ilusões fecundem”. Seria o “Sésamo, abre-te” do qual ele fala.
Portanto, nada de dar ouvidos aos “psiquiatras” que “querem trazer à preguiça mais essa qualificação de doentia, redimindo os ócios culposos, vulgarizando os ócios salutares! Revoltemo-nos! A preguiça não pode ser reduzida a uma doença!”
A preguiça tem um papel fundamental a desempenhar, portanto. A divina preguiça, criadora, bocejo sublime, será a parteira dos novos tempos.
No entanto, se Mário escrevesse, não em 27 de agosto de 1918, mas nessa morna quinta-feira de 19 de novembro de 2009, penso que ele teria um problema a mais.
Hoje circula muita desconversa a respeito do assunto. O chamado mundo corporativo – que se apropriou de algumas categorias com as quais a filosofia pensou a questão do trabalho e do ócio – vulgariza um discurso que, desinteressado do verdadeiro ócio e da divina preguiça, busca transformar trabalhadores em criaturas maleáveis, acomodadas às felicidades do consumo, ao projeto de ganhar mais, ter prestígio e sucesso. Enfim, ócio incorporado à produção.
Trata-se de uma perversão da divina preguiça. Imagino que Mário de Andrade reclamaria. É preciso estar alerta: o ócio e a preguiça têm um valor absoluto, caso contrário se perdem como instrumento de manipulação nas mãos de quem manda.
A divina preguiça injeta, nas ações humanas, um antídoto contra toda servidão ao trabalho. É o espaço aberto à criatividade, à liberdade, capaz de dar aos homens a sensação de plenitude que só o reencontro de si mesmo pode proporcionar. Sem lucros e sem utilidades oportunistas – apenas pela realização do que há de melhor no ser humano. Pouco importa que seja exercida no domínio da técnica, da ciência, das artes ou do conhecimento de si mesmo, aquilo que os gregos chamavam de autonomia.
Eis onde nos levam as intuições geniais que Mário de Andrade lançou em seu artigo de 1918.
Agora, se alguém ainda dirige à preguiça ou ao ócio um olhar de desconfiança, lembro mais um paradoxo: não é fácil encontrarmos quem tenha trabalhado mais do que Mário de Andrade. Ou quem trabalhou mais do que Picasso ou Paster.
Mas é um trabalho de outra ordem – erotizado, como diria Marcuse anos mais tarde, em 1955, ou, “no convívio da divina Preguiça”, como escreveu Mário naquele distante ano de 1918.

2 comentários:

  1. Antonio Manoel dos Santos Silva21 de novembro de 2011 às 11:04

    Roberto, havia lido sua crônica em 2009: agora veio acompanhada do texto de Mário de Andrade, o que permite verificar a justeza e pertinência de suas observações sobre uma das intuições do grande modernista e, ao mesmo tempo, comprovar que ele tinha uma percepção aguda do que acontecia ou estava para acontecer. Aliás, você nos deixa alertas para outras possibilidades em relação aos textos de juventude de Mário de Andrade: a) quantos textos dele ainda desconhecidos ocultam, em forma embrionária, outras ideias somente mais tarde desenvolvidas por filósofos, estetas e cientistas e mesmo teóricos da literatura? quantas crônicas do autor de Macunaíma, algumas admiráveis, ainda estão para ser lidas com sensibilidade e rigor (como você faz agora), podendo, assim, desvendar as contribuições que ele deu para a psicologia, para a sociologia da cultura, para a filosofia da arte, para a estética da recepção e para os tão exaltados hoje "estudos culturais"?
    Parabéns, Roberto, pelo achado d'A Divina Preguiça e por ter mostrado a contemporaneidade que você percebeu nela.

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  2. Genial, professor Roberto Gomes. Penso assim: Ah se as pessoas tivessem apenas um trabalho servil de seis horas diárias, nestes tempos modernos! As outras horas seriam para se viver a vida de verdade: ler, ver o mundo, a natureza, bater papos, visitar bibliotecas, passear simplesmente ou ficar em casa, numa rede, a pensar sobre estrelas!... Mas não. Querem-nos escravos das horas! Depois das horas de trabalho não se tem mais tempo pra nada, a não ser perceber-se esgotado, destruído em seus sonhos, acabrunhado e se preparando para o outro dia das mesmices.

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