segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O que valerá a pena guardar?






Algumas de minhas obsessões – e são muitas – incluem antigas capas de LPs, a máquina de escrever portátil no qual batuquei durante anos, um rádio de cabeceira que me acompanha há quatro décadas e, é claro, meus livros. Obsessões.
Isso me leva a pensar na natureza das coisas que costumamos guardar. Por exemplo: as capas de certos LPs – e tenho algumas na memória, além daquelas que guardo comigo – eram muitas vezes obras de arte. Valiosas não apenas por embalar os discos, não raro iam parar nas paredes como se fossem quadros. Lembro-me de algumas, que datam de 1963, quando Aloysio de Oliveira criou a gravadora Elenco, revolucionando, entre outras coisas, o visual das capas. Um dos criadores das capas era César Vilella e o fotógrafo chamava-se Chico Pereira. Os dois deram caras identificáveis e definitivas a discos de Tom Jobim, Maysa, Vinícius, Nara Leão, Baden, tantos outros. De longe se sabia que era um LP da Elenco. A cara da bossa nova. Reproduções dessas capas foram dependuradas em paredes de bares, de quartos de adolescentes, de diretórios estudantis, chegando, no final de 2008, às paredes do Instituto Tomie Ohtake. A glória de um museu. Criações refinadas, soberbas.
Tudo isso pode parecer nostalgia, mas não é. Hoje eu olho para as capas de CDs e DVDs e fico tentando descobrir por qual razão, mesmo quando são boas produções gráficas, nada convida a serem guardadas como obras de arte independentes do conteúdo musical que abrigam.
Há nelas algo de assumidamente passageiro, algo que convida ao descarte. O mesmo acontece com os equipamentos nos quais escrevemos, notebooks ou micros de mesa. Quem pensaria em guardar um micro num museu por ter sido usado por algum escritor? No entanto, os museus guardam máquinas de escrever e canetas que pertenceram a romancistas e poetas. Duvido que se guarde algum notebook. Eles são – por mais que facilitem a vida de quem escreve – algo programado para morrer. Descartáveis.
Um notebook é apenas um notebook igual a qualquer outro notebook, enquanto uma máquina de escrever é única, exclusiva, marcada para sempre pelos dedos que a batucaram durante uma vida. A máquina de escrever guarda segredos das obras literárias que ajudou a criar.
Assim, nada de nostalgia. Já defendi, mais de uma vez, o livro digital de bobagens que são ditas a seu respeito. É um equipamento notável porque pode conter uma biblioteca e permite diferentes acessos. É leve, prático, simples – quase um livro. Mas não é um livro. Quem pensará em guardar um e-book num museu? Num museu de informática, tudo bem. Mas guardaríamos um tablet no qual algum poeta lia seus autores preferidos? O tablet, ao contrário do livro, não consegue ser ele próprio uma obra de arte integrada a seu conteúdo: o texto é nele mera informação, não criação gráfica. Não tem autonomia alguma.
Até porque os arquivos digitais têm um limite de uso. Hoje podemos consultar livros impressos no século XVI. Um arquivo digital, com poucos anos, já não pode ser aberto, já não circula nos novos equipamentos, já não é entendido por programas recentes, se degrada, morre fácil. O impresso em papel – por mais que se fale na fragilidade do papel – tem uma vida muito mais longa do que os bytes de um arquivo.
Vejam o caso de meu rádio de cabeceira, companheiro de quatro décadas. Não me desfaço dele. Bem cuidado, funcionará por muitos anos. Já um walkman, nascido no início da década de 1980, é tido como imprestável. Seus sucessores aí estão, todos marcados pela mesma fragilidade: ninguém se atreverá a guardá-los. Não rodarão mais ou não poderão ler novos arquivos.
A razão é essa: o mundo digital – que facilita nossa vida enormemente – traz em sua própria concepção uma data fatal. Uma capa de CD ou DVD pode ser muito bem bolada, mas jamais será dependurada numa parede. Um tocador de MP3 é (ou já foi?) versátil, mas nada o transforma em objeto único – é apenas mais um. Um notebook jamais incorporará o jeito e as manias de quem o usou. Um tablet jamais será um livro, pois um livro pode ser uma obra de arte ele mesmo.
Note-se que equipamentos digitais não envelhecem pela ação do tempo, como se dá com tudo o mais. Envelhecem porque trazem embutido neles o que os consome: serem os últimos de uma fila, a mais nova versão. O que é fatal.
Por isso certos objetos guardam uma permanência intrínseca, indo além de seu tempo, enquanto outros têm vida breve.





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