sábado, 26 de outubro de 2013

Biografias, censores, hagiografias


Roberto Carlos por William Medeiros



O Brasil é o país das polêmicas inúteis. E mais: o Brasil é um país autoritário. Dito assim, muitos concordarão e por uma razão simples: a frase possui um altíssimo grau de verdade.
Ocorre que essa atribuição genérica de autoritarismo ao país é utilizada para insinuar que os autoritários “são os outros”. Eis onde mora o equívoco.
A direita brasileira esbraveja contra limitações às liberdades. Querem pensar, agir, comerciar, produzir, explorar sem amarras. Muito bem. Mas sabemos que, no passado e no presente, a direita aliou-se ao autoritarismo, à repressão, à censura, à tortura. Inclusive “filósofos” que hoje esbravejam contra a “esquerda” não escondem o desejo de chavear a boca dos adversários. Discutir, argumentar, é raro.
Isso quanto à direita. Vamos ao outro lado, a esquerda, ainda que as palavras esquerda e direita já devessem ter desaparecido, por esclerose, de um vocabulário político civilizado.
Pois a esquerda, que travou lutas épicas contra ditaduras, não raro dá demonstrações do mesmo espírito autoritário.
O episódio recente é o complô de artistas exigindo biografias “autorizadas” em defesa da “intimidade” – assim como há uma Lei Maria da Penha, acho que desejam uma Lei Roberto Carlos, sendo que essa não tem o mérito daquela.
Desta forma, se o leitor quiser escrever uma biografia do traficante Antônio Bonfim Lopes, o Nem da Rocinha, ou de Renan Calheiros, o chefão do Senado Federal, terá que obter autorização do personagem, submetendo o texto à censura prévia. Isso levaria ao aparecimento de hagiografias nas quais os referidos são retratados como homens santos. Tal como o Senhor de Bayard, são cavalheiros “sans peur et sans reproche”.
Na biografia, portanto, não devem constar “intimidades” que supostamente denigram o retratado. Estranho essa preocupação com “intimidades”. Acharia mais relevante a preocupação com as “publicidades” que envolvem artistas: apoios governamentais indevidos, grana de estatais poderosas, troca de favores com governantes, farra com grana pública, incentivos marotos etc. Pecadilhos “públicos” sempre me parecem mais graves.
Além disso, sempre que se incomodam, direita e esquerda querem de imediato aprovar uma lei. No caso, censura prévia. Ao contrário do resto do mundo civilizado onde as biografias não autorizadas abundam. Por isso vemos criaturas que admiramos – Chico e Caetano – apoiando uma muleta legal que imponha biografias chapas brancas.
Mas, tratando-se do Brasil, tudo resultará em circo. Abrir a mente a debates francos não interessa. Abrir arquivos e realizar pesquisas sobre fatos e nomes nacionais também não. Trazer à tona a memória pessoal e social assusta muita gente. Como ficará a pose no retratinho do falecido? Por isso foi necessária uma comissão da verdade para investigar fatos que já eram do conhecimento público há décadas.
É preciso afastar desse debate as questões pessoais e investigar as razões sócio-culturais que levam o Brasil às polêmicas inúteis, nas quais as vítimas são a liberdade e a verdade.
A não ser que o biografado seja um santo homem, o que, convenhamos, rareia.

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