Alguém poderia
perguntar o que Curitiba tem a ver com carnaval, a festa da carne, na minha
desabusada maneira de inventar etimologias. Aliás, como em questões
etimológicas ninguém se entende – no que está a graça e o fascínio desta
ciência que os linguistas atuais desprezam – as interpretações podem ser
várias. Entre as opções, uma delas garante que a palavra vem de “adeus à carne”
(carne vale, no latim) faz sentido.
Antes que os dias de privação e jejum subjuguem a volúpia da carne, o melhor é
dar a ela uma ocasião de se esbaldar, pois na quaresma será necessário se
abster de carne e de abusos a ela relacionados. Portanto, uma fuzarca prévia e
preventiva é necessária. Ou seja, a festa da carne.
E Curitiba com isso?
Pois essa é uma cidade
curiosa. Fui descobrir que aqui existem exemplares da fauna humana que professam
a crença absoluta em dois dogmas: o primeiro diz que não existe carnaval em
Curitiba e, o segundo, que não deve existir carnaval em Curitiba. Trata-se,
como se vê, de uma imposição categórica à maneira kantiana. Não existe e não
deve existir.
Que se diga que o
carnaval aqui é modesto, pobrinho, um tanto triste e desajeitado, chegando ao
constrangedor, é aceitável. Mas existe. Há quem se divirta com ele. Há uns
cinco anos eu e meu filho resolvemos, para testar máquinas fotográficas recém-adquiridas,
fotografar um desfile de carnaval em Curitiba. Acho que cobria uns cem ou
duzentos metros de avenida, os participantes eram poucos, o povo nas
arquibancadas olhava sem saber o que fazer, mas aqui e ali havia quem tivesse
samba no pé, embora o samba propriamente fosse muito fraquinho. Fotografamos
esforçadamente, mas o resultado foi desanimador. Não como fotografia, mas como registro
daquele desfile melancólico.
No entanto, há carnaval.
Estava ali na nossa frente e acho que não se pode pregar que ele não deva
existir nessas plagas. É preciso pensar nas razões dessas crenças
estapafúrdias.
Os mais jovens podem
estranhar, mas há não muito tempo usar bermuda em Curitiba era algo tido como
indigno de um autêntico curitibano. Um curitibano da melhor cepa – sobretudo se
fosse dado a prendas intelectuais, digamos um professor, um intelectual, um
jornalista, um escritor – não deixava as pernocas à mostra pelas ruas. Homens
sérios não usavam bermudas. E não gostavam de carnaval assim como não gostavam
de praia. Cansei de ouvir discursos acalorados contra os bichos de pé nas
areias da praia, contra os incômodos da areia penetrando onde não deveria,
contra a violência do carnaval, a frouxidão de costumes, a baderna. Curitiba, a
séria, não gostava dessas bandalheiras em seu território.
Com o tempo isso mudou
– mas mudou ao modo curitibano. Hoje os habitantes da cidade toleram a bermuda
e festejam o carnaval, mas o fazem na praia. Vão todos para o litoral, onde a
fuzarca come solta e desenfreada, sendo que a cidade fica vazia para serventia
de quem, tal como eu, gosta de cidades vazias, de ruas silenciosas, de cenários
desertos. É uma espécie de ritual de preservação do lugar sagrado onde moram.
Fuzarca só na casa do vizinho, que pode ser também na Oktoberfest, em Blumenau,
espécie de carnaval germânico regado a cerveja.
Mas na minha memória,
sempre dispersiva, o carnaval curitibano adquiriu um significado especial, que
o liga à minha infância, à minha primeira visita a essa cidade e às fantasias
que fabriquei com alguns fragmentos de lembranças.
Vim a Curitiba pela
primeira vez quando tinha uns quatro ou cinco anos, não mais. Guardo dessa
ocasião uma memória em flashes fotográficos muito nítidos. Não me lembro do
conjunto dessa viagem, não sei como aqui cheguei e onde fiquei, mas lembro de
duas coisas como se estivessem acontecendo hoje. Fotos nítidas na parede. É só
olhar.
Na primeira dessas
fotos estão os bondes. Adorei andar de bonde, obrigando minha mãe, a custa de
chateações e chantagens, a ir e vir comigo de bonde pela então pacata Curitiba.
Mas não me lembro da cidade, só do bonde, de estar sentado naqueles bancos, de
ver a cidade saltitando como fotogramas pela janela. Parecia uma história em
quadrinhos. Fiquei maravilhado.
A segunda imagem,
nítida e cinematográfica, em grande plano americano, se deu a partir de uma sacada
do prédio que fica na esquina da Avenida Luiz Xavier com a Travessa Oliveira
Bello, onde hoje está o HSBC. Lá estou eu, cabeça enfiada entre as pernas dos
adultos, a espiar a rua na qual dança um homem negro, alto e magro, vestido com
um terno branco que ainda hoje me ofusca as vistas. Dançando a seu lado, uma
bela mulher mulata evolui ondulando uma bandeira no ar ao ritmo da música. Ouço
também o samba ao fundo, mas só vejo os dois dançarinos e aquela dança me
encanta.
No cruzamento daquelas ruas,
cercados pelo povo, eles dançam. Curitiba ficou sendo para mim uma cidade na
qual existem festas nas quais as pessoas dançam nas ruas. E na qual existiam os
fascinantes bondes. Duas coisas que não existiam na germânica Blumenau de onde
eu vinha.
A vida, no entanto, nos
dá tombos frequentes, foi o que aprendi ao longo dos anos. Demorei a voltar a
Curitiba. Já era então um adolescente espinhento. E na cidade, onde eu esperava
circular novamente de bonde, já não havia bondes. Numa rua qualquer, não sei
qual, tropecei nuns trilhos inúteis, encaramujados entre paralelepípedos.
Foi meu primeiro
aprendizado curitibano. Não é uma cidade fácil.
Mas não desisti.
Confessando-me decepcionado com a ausência dos bondes, perguntei a alguém como
andavam os preparativos para o carnaval, que seria no mês seguinte.
- Carnaval?
- É. Carnaval.
- Aqui em Curitiba?
- Claro.
- Não existe, menino!
Já não havia mais
bondes nessa estranha cidade e, carnaval, pelo tom da resposta, era coisa vista
com certa repulsa. Eu levaria mais uns anos para encontrar aqueles que
professam a crença dogmática de que carnaval em Curitiba não existe e nem pode
existir, mas já senti o clima.
Curitiba não me engana.
Sempre foi sincera comigo. A segunda aprendizagem.
Decepcionado, passei
novamente alguns anos sem colocar os pés aqui. Meu mundo se dividia então entre
Blumenau, lugar de estudos e trabalho, onde eu tomava chope feito um alemão, e
Florianópolis, para onde ia durante o verão, passar dois meses na casa de
parentes – fazia-se isso naquela época, acho que havia fartura então, uma
fartura solidária, não fartura de gente rica.
Foi lá que conheci o
Carnaval. Minhas memórias não são nada confiáveis, motivo pelo qual me obstino
a escrever a respeito desses tempos passados – quem sabe os coloco um dia em boa
ordem. O fato é que na Ilha dos Casos Raros, como seus habitantes se referem à
cidade, havia carnaval de verdade. As escolas de samba, Copa Lord e Protegidos
da Princesa, sendo que eu torcia pela primeira. E as chamadas Sociedades, Granadeiros
da Ilha e Tenentes do Diabo. Nessas havia caros alegóricos mutantes, nos quais
de dentro de uma caixa feericamente iluminada saía outra e mais outra até que
lá no alto emergia, saindo de uma bola azul cintilante, uma sambista com roupas
mínimas. Mínimas para a época, é claro, que os tempos eram outros e pudicos,
mesmo no reinado de Momo. Mas era o que bastava.
A música era da melhor
qualidade, os compositores eram tipos que encontrávamos no mercado municipal e os
sambistas tinham o tal samba no pé. Naquele embalo, íamos todos, de cara limpa
e sem fantasias, fumando Continental sem filtro que segurávamos numa das mãos
enquanto na outra empunhávamos um tubo de lança perfume, que tinha a serventia
de provocar arrepios gelados nas costas e nas pernas das moças, além de
encharcar lenços que cheirávamos cantando desembestados.
Nada a ver com o
gigantismo das escolas atuais, é claro. Era quase uma festa de salão ao ar
livre que girava em torno da praça XV,
onde ainda se encontra a figueira centenária que pode confirmar a história.
Como sempre, nesse tipo
de universo, existem os tipos míticos. Lembro-me de um deles, um mulato
belíssimo, de uma elegância notável, dançarino excepcional, que, tendo tropeçado
na conjugação de um verbo numa arguição oral de francês, recebeu da professora
o apelido de Avez-vous. Mas, como
ocorre com os mitos e as etimologias, há outra versão: recebera o apelido porque,
inteligente e falante, gostava de fazer citações em francês. Assim ficou conhecido
para sempre, tanto no mundo do samba quanto na cidade, onde faleceu em 2008,
atropelado às vésperas do carnaval. Foi compositor, formado em Direito, e
dedicou a vida à escola de samba Copa Lord. Quando ele passava sambando a multidão
explodia:
- Avez-vous! Avez-vous!
Nada mais surrealista.
Além da praça XV,
tínhamos os clubes – o Lira e o 12 de agosto. A grande aventura era conseguir
entrar sem ser sócio. Contávamos então com um de nossos amigos que era craque
em forjar documentos. Carteirinhas de sócio, por exemplo. Nelas éramos todos maiores
de idade. O truque era esperar o início do baile, a música subir a todo vapor,
e se enturmar num grupo qualquer que chegava cantando e dançando. Os porteiros
não davam conta. Entrávamos.
Pois foi nesse clube
que pulei o mais fantástico carnaval de minha vida, não só por motivos
carnavalescos, como se verá.
Ocorre que eu tinha uma
namorada chamada Di. Não vou dizer que era bonita. Era mais do que isso. Nesse
momento de nossas vidas e paixões, as mulheres são alucinantes . Ocorre que eu
tinha 16 anos e, ela, 32. No dia primeiro de ano passamos juntos, em Blumenau.
Conseguimos embebedar estrategicamente o resto da família e, ao longo da
madrugada, ficamos os dois dançando na sala da casa ao som de um LP
que girava num toca-discos de plástico, daqueles que abriam uma tampa que era
ao mesmo tempo o alto-falante. Ali começamos a namorar. Mas secretamente, é
claro e por motivos óbvios. Quando chegou o Carnaval, fomos, não apenas nós
dois, mas a família inteira, a Florianópolis, onde ficamos na casa de meus
tios.
O Clube 12 ficava num
prédio antigo e parecia um caixote doido que se sacudia ameaçador ao ritmo da
orquestra. Muita cuba-livre. E uma mistura maluca que usávamos na época,
conhaque com guaraná. Ali pelas quatro da manhã, saímos do baile, e percorremos
abraçados toda a extensão da imensa avenida Mauro Ramos até a Praia de Fora,
que hoje só poderíamos percorrer de madrugada protegidos por um pelotão de guarda-costas.
Mas naquela madrugada, éramos únicos no mundo. Todos os apaixonados são únicos no
mundo, os últimos habitantes do planeta.
A praia de Fora era
então uma praia de verdade. Hoje está aterrada, por lá passa uma avenida que a
engoliu. Na época era uma praia rasa, de águas calmas, com uma estreita faixa
de areia que separava o mar da fileira de casas de madeira, muitas delas de
pescadores. Havia canoas ancoradas por ali. Havia uma claridade suave que nos
orientava e, ao mesmo tempo, a sombra de árvores que nos escondiam.
Achamos um lugar de
areia seca e firme e foi ali que deitamos. As mulheres dessa época usavam
vestidos, o que foi providencial pela facilidade, digamos, de acesso e pela
ameaça invasora da areia. Mas era minha primeira vez. Do que eu fazia segredo.
Mas não havia como recuar nem como esconder minha atrapalhação. Como seria
mesmo? Teria algo a ver com tudo que imaginara solitariamente? Passavam pela
minha cabeça os desenhos eróticos das revistinhas do Carlos Zéfiro. E revi
páginas de um romance que circulava clandestino entre nós: uma vida de Messalina.
Descobri, no entanto, que agora era diferente. Era até difícil. Nem tudo
funcionava. Não era bem assim. Entre beijos e abraços, e com a ajuda generosa da
Di, afinal consegui entender o como e onde e, fazendo pose de sabido, fiz sexo
pela primeira vez.
É claro que depois
fiquei confuso – teria sido um fracasso? Ficamos por algum tempo deitados,
exaustos, depois de horas de carnaval e uns trinta minutos de sexo, e
resolvemos ir para a casa de meus tios, que ficava a três quadras. Levantamos
e, abraçados, começamos a caminhar.
Foi quando surgiu da
escuridão o vulto de um homem. Apertamos o abraço, assustados. O homem,
carregando algo que erguia nas costas com o braço esquerdo, passou por nós e
deu com a mão direita no chapéu, dizendo:
- ‘noite!
Respondemos em
uníssono:
- ‘noite!
Ele se foi. Era apenas
um pescador. Carregava uma rede. Respiramos aliviados. Estivera escondido por
ali nos observando? Pouco importava. Voltamos para casa.
Foi o melhor Carnaval
de minha vida e não devo ter sido o amante desastrado que imaginei, pois o
namoro continuou por mais dois anos, o que me lembra, quando penso nisso, os
versos de Neruda, que eu e Di líamos juntos:
Cuerpo
de mujer, blancas colinas, muslos blancos,
Te
pareces al mundo en tu actitud de entrega.
Mas, se foi o melhor
carnaval de minha vida, foi também o último. Nunca mais fui a nenhum baile de
carnaval. Fico pensando por qual razão na afastei de uma fuzarca da qual
gostava, mas não consigo entender direito.
Imagino dois motivos.
Com o tempo, passei a
fazer parte de um grupo de sujeitos metidos a ler, a escrever, a publicar
jornais estudantis, a fazer política, a beber chope industrialmente enquanto
travávamos discussões supostamente elevadíssimas. Saíamos do curso noturno ali
pelas onze horas e ficávamos até às quatro da manhã pelos botecos, não apenas
bebendo, mas preparando a grande revolução que imaginávamos que o país esperava
de nós. Deu no que deu. Envolvido com os altos destinos da nação e com a
literatura, só reservava tempo, além do emprego no banco e das aulas noturnas, para
os encontros secretos com Di. O carnaval deixou de me interessar.
E eis o outro motivo,
talvez o principal: era melhor não ir a outro baile de carnaval, pois o encanto
daquele jamais se repetiria.
O carnaval sumiu de
minha vida. Às fantasias que ele provoca eu não tinha o que opor senão as
ilusões perdidas. Talvez por isso ancorei meus sonhos e desacertos em Curitiba,
cidade na qual, conforme me haviam advertido, não existiam nem bondes nem carnaval.
NOTA: publico na Revista IDEIAS, editada em Curitiba, textos que refletem sobre fragmentos de memórias e lembranças associadas a eles. Aqui no blog já postei três textos saídos na IDEIAS que antecederam esse que hoje publico: Meu primeiro filme pornô, Língua e Literatura só com prazer e O exílio era aqui - tempos de ditadura . Dou essa informação a pedido de alguns leitores do blog.
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