sábado, 27 de setembro de 2014

Canivetes versus Cavaletes







Bons Dias.
Assim Machado de Assis começava suas crônicas na Gazeta de Notícias, sendo que o fecho era um Boa Noite. Os Bons Dias são compreensíveis, sendo o jornal matutino, mas o Boa Noite ficava no ar. A verdade é que entre os dois estava o texto e a ironia machadiana. Era possível desejar um dia ensolarado e belo, mas ao final do texto só restava a esperança de uma Boa Noite.
Os temas dessas crônicas costumavam ser políticos, circunstância que a ignorância literária nacional eclipsou, rotulando Machado como um autor alheio aos debates sociais da época.
Dou essa pirueta machadiana para me dizer refém do atual reboliço político. Vemos uma grande feira de vaidades e de anúncios de milagres. Temos de um lado um país aquarelado e cheio de sol, que só os pessimistas não enxergam. Do outro, um futuro radiante ao alcance de um voto. Quem não resolveu certos problemas irá resolvê-los no próximo mandato e todos que pretendem entrar em cena juram que o futuro nos sorrirá depois de amanhã.
Mas não quero falar disso, quero falar dos cavaletes em vias públicas. Como veem os leitores, de todos os problemas nacionais, escolho o mais pobrinho: cavaletes. Eles estão por toda parte. Candidatos que passaram pelo Photoshop, peles de plástico, sem rugas, bocas imensas em sorrisos, cores abundantes e dentes alvos. Frases que são verdadeiros dardos. A felicidade à vista. O crescimento instantâneo e sustentável. O futuro a prazo.
Mas quero falar dos cavaletes. Gostaria de saber como é que eles brotam feito cogumelos, emporcalhando a cidade, atrapalhando quem anda pelas calçadas ou dirige seu automóvel. O motorista precisa enxergar o trânsito, mas dá de cara com o sorridente candidato(a) a lhe prometer os céus. Não a via pública livre.
Vim a saber que há regulamentação municipal que limita os lugares e os horários nos quais tais cavaletes podem, digamos, circular.
O que não é obedecido por partidos e comparsas. O dia inteiro e madrugada afora lá estão eles despedaçados pelas vias públicas atrapalhando o trânsito. Na manhã seguinte estão de volta, os cogumelos. Brotam vigorosos.
Um vizinho meu sai para sua caminhada de todos os dias levando consigo um canivete. Contra o cavalete, o canivete. Vai caminhando e cantando e rasgando cavaletes. Já cortou carecas, bigodes, orelhas, penteados volumosos, sorrisos tentadores. Quanto volta, hora e meia depois, grita ao passar pela minha janela: cinquenta e dois! A marca do dia.
Mas é inútil. No dia seguinte lá estão novamente. Conquistarão algum voto? Alguém mudará seu voto ao tropeçar num cavalete?
Prática que enfeia a cidade e pecadilho previsto em lei, eles mostram como os governantes e pretendentes tratam o povo ignaro. Mesmo o mais ingênuo dos votantes fica pensando: se eles burlam a lei e emporcalham as ruas assim, a olhos vistos, diante de todos, contra posturas municipais, o que será que essas madames e cavalheiros não tramam na calada da noite, nos corredores dos palácios, nos conchavos acertados em reuniões secretas?
Ah, caros leitores, como diria Machado de Assis:
Boa Noite.




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