Rubens (1577-1640)- Vénus ao espelho, óleo sobre madeira |
Dolores se viu no
espelho.
Deu um passo para trás,
virou o rosto para a direita e para a esquerda. Alisou o pescoço, sorriu, fez
uma careta. Concluiu que precisava de uma arrumação na pele. Aliás, não só na
pele, mas no corte e na cor dos cabelos, nas roupas que usava, no desenho das
sobrancelhas.
E, sem a ajuda do
espelho, decidiu que precisava recauchutar seu próprio nome.
Aquele nome a incomodava
não era de hoje. Há anos pensava em trocá-lo por outro, mais vivo, mais alegre,
que combinasse com ela. Não se sentia na pele de Dolores alguma, menos ainda daquela
Dolores na qual se tornara. Mas qual seria a Dolores na qual se tornara? Não
sabia. Passou o dia inteiro pensando naquilo e só ao final da tarde lembrou-se
de uma entrevista em que uma atriz explicava como mudara de nome e de vida
consultando uma numeróloga. Era isso. Procuraria uma numeróloga. Começaria por
aí.
Esqueceu o assunto por
dois dias e, na manhã do terceiro dia, ao ver-se de novo no espelho, resolveu:
era hoje. Conseguiu o telefone da numeróloga com uma amiga, marcou hora e lá se
foi. Era pra lá de Campo Comprido, pois esse pessoal que lê cartas, tarô e lida
com numerologia costuma morar longe.
A mulher – gorda e
grande, com um turbante escandaloso e lábios vermelhos – anotou seu nome, sua
data de nascimento, fez umas contas e decretou:
- Tem razão. Esse nome
não combina com você. Serve para outras mulheres, mas não para você. Dor,
Dolores, não pode dar certo. Por isso continua solteira.
- Solteira e infeliz,
comentou, penalizada consigo mesma.
- É esse nome... Lembra
da Dolores Duran?
- Lembro.
- Um caso parecido. Vamos
dar um jeito. Não há o que a ciência da numerologia não conserte.
Saiu de lá faiscando de
felicidade com as indicações da numeróloga, que lhe mostrou cálculos, números
cabalísticos, consultou as cartas do tarô e remexeu nas letras de seu nome até
chegar a uma conclusão. Anotou seu novo nome num papelzinho. Ele abriria seus caminhos
rumo ao sucesso e à felicidade, afirmou a numeróloga. Recomendou que o
papelzinho fosse guardado por sete dias junto ao seio.
Estava selada a mudança.
Agora se chamava Lory.
Mas não ficou nisso.
Sentindo-se uma nova mulher, trocou de cabelereiro e de corte de cabelo, fez um
tratamento de pele doloroso, arrebitou o nariz, apertou as narinas e estufou os
lábios com um cirurgião plástico, o que lhe custou uma fortuna. Mas estava
feliz. Quando se sentiu livre das marcas da plástica, foi ao shopping. Queria
exibir ao mundo e a todas às amigas a sua transformação.
Andou de um lado para
outro, enfrentou corredores, entrou e saiu de lojas que costumava frequentar esperando
ser admirada pelo novo nome, pelo novo rosto e pelo novo destino. Mas aquele
povo estava ocupado em vender e faturar. Ninguém notou nada.
Foi quando ouviu um
grito:
- Dolores, minha
querida!
Era Clara, amiga que
não via há algum tempo.
- Que bom te encontrar,
Dolores!
Clara examinou-a de
alto a baixo e, antes que pudesse revelar que agora se chamava Lory, a amiga
lascou:
- Que beleza, Dolores!
Você não muda nunca!
Ela desabou nos braços
de Clara, aos prantos.
Quem me apresentou Roberto Gomes foi Eulália, na crônica de 25/09/2011. Desde então, não perco uma. (Provavelmente já lera outras, mas nenhuma me tocou daquele jeito.)
ResponderExcluirAgora vem uma Dolores (que ainda não usa óculos, como Eulália, mas também tem um espelho) descontente com o que nele vê.
Se uma esconde os óculos, outra surpreende e vai à luta.
Obrigada, cronista, pois suas mulheres - sejam eulálias, matildes ou dolores - sempre refletirão um pouco da mulher de nossos espelhos. E todas nos mostram que, com ou sem óculos, com ou sem transformações exteriores, continuamos as mesmas em essência.