Que tempos eram
aqueles?
Jamais saberemos. O ser
humano imagina decifrar enigmas havidos há séculos, mas custa a entender o que
viu com seus próprios olhos.
A explicação pode ser
simples. O que vivemos é uma mescla de sentimentos e desejos e ideias e
fantasias com uma pitadinha disso que se chama de realidade. E é rebelde a
conceitos. Já fatos remotos podem ser depurados e pensados com clareza racional.
Por essa razão imaginamos ser capazes de entender o passado.
Então, os tempos eram
aqueles.
Ali na PUC/SP tínhamos
aula numa saleta minúscula. Cursávamos uma coisa chamada pós-graduação em
Filosofia da Educação. Vi pouca filosofia da educação ali e menos ainda quaisquer
aventuras de pensamento. Recebíamos uma dieta de leituras de Marx e Gramsci,
servidos com fervor religioso. Era possível discordar aqui ou ali, jamais questionar
o texto em si. O sagrado, é sabido, não se contesta.
O professor era um tipo
pequenino, frágil, voz quase inaudível, hesitante, apoiando a bunda na mesa, de
onde não desgrudava, fazendo poucos movimentos com braços e mãos. Parecia faltar
vida ao sujeito. Eu o observava com sentida piedade e julgava que dentro de sua
cabeça deveriam existir cubos, retas, triângulos, todos muito bem organizados,
com os quais esgrimia aquilo que chamava de dialética em busca do conhecimento
histórico.
Pois num desses dias em
que eu morria de tédio durante a aula – duas horas de relógio, ou seja, seis
horas de duração – olhei para um colega sentado a meu lado e, sem qualquer
sinal, saímos da sala. Não aguentávamos mais.
Fomos ao corredor e lá
ficamos conversando. O assunto estava nos jornais. No dia anterior, 10/02/1980,
no Colégio Sion, a algumas quadras de onde estávamos, fora fundado o Partido
dos Trabalhadores. Havia certa euforia no ar. Meu colega me provocou:
- Acho uma besteira
fundar um partido.
Eu conhecia o
argumento. Partidos acabam entrando na lógica da política dita burguesa, na tal
democracia formal etc., sendo mais perigosos do que se pensa. Uma arapuca.
Decidi, com alguma
convicção, devolver a provocação:
- E você queria que
eles fizessem o quê? A Revolução?
A Revolução, com
inicial maiúscula como se usava na época, era um sólido bloco monolítico do
qual não se duvidava. Sem ele, impossível pensar. Ficamos nisso. Já havíamos
nos chateado o bastante na aula e deixamos para lá.
Fomos à cantina,
fumamos um cigarro e uma hora depois voltamos para a aula seguinte.
Entrou porta adentro
uma nova professora. Cabelos imensos, certa fúria e extravagância. Era mutante.
A cada aula se metia numa fantasia diferente. Colocou livros sobre a mesa na
qual repousara há pouco a bunda do professor e disparou:
- Tudo o que eu penso
está comprometido politicamente. Sou engajada e estou aqui para fazer a cabeça
de vocês! Defendam-se!
Eu e meu colega não conseguimos
acreditar no que ouvíamos.
E talvez não tenhamos
entendido até hoje. Não posso garantir. Esse meu colega sumiu do mapa e não
guardei seu nome. O que é uma pena. Quem sabe chegou a entender o que se passara
naquele dia. Poderia me ajudar trinta e cinco anos depois.
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