sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Andando de bicicleta



Não foi bem isso, mas foi quase




Há alguns anos não andava de bicicleta. Explico: fui vítima de dois roubos de magrelas. Compraria outra? Demorei a me decidir.
Pois cá estou com uma nova bicicleta.
A primeira dificuldade é se readaptar. Embora jamais se esqueça de como se anda de bicicleta, a verdade é que mudou o trânsito, o número e a ferocidade dos carros, a agilidade do ciclista, até mesmo a paciência em pedalar escolhendo alternativas pela cidade. Mas temos as ciclovias. Assim, lá vou eu.
Com alguns cuidados, porém. Trago na memória o acidente que sofri quando tinha dez anos. Ia de bicicleta ao colégio, um trecho de uns quatro quilômetros. Atrasado para a aula de educação física, cujo professor era um baixinho exigente e autoritário, eu dava pedaladas furiosas para chegar a tempo.
A Rua Sete de Setembro – numa Blumenau que não mais existe – estava sendo preparada para a colocação de paralelepípedos e havia sido recoberta por macadame, uns pedregulhos robustos. A última lembrança que guardo é da trepidação sobre o macadame. Foi quando a bicicleta pareceu sumir chão adentro. Curiosamente, sem choques ou dores; como se o tempo parasse e eu mergulhasse numa piscina cheia de nuvens. Eis o que me ficou na minha memória. A morte deve ser assim.
Acordei duas horas depois, num hospital. À minha frente, um médico e um homem que não reconheci. Abri os olhos com dificuldade e o médico me perguntou:
- Como é seu nome, menino?
Disse meu nome e sobrenome, o que causou um sobressalto no homem que estava ao lado do médico.
- Você é o filho do João Gomes? perguntou ele, surpreso.
- Sim.
O homem ficou pasmo. Ele me conhecia, mas não me reconhecera: meu rosto estava em carne viva. Aquele homem, chamado Glauco Olinger, que me recolhera na rua e me trouxera ao hospital, saiu em busca de meu pai, seu amigo.
Os próximos trinta dias foram de idas e vindas ao hospital. Eu era colocado numa cadeira, diante de um alemão imenso, o enfermeiro, que ia retirando com uma pinça os grãos de areia e fragmentos de pedras que ficaram incrustados no meu rosto e que brotavam aos poucos. A cada dia emergiam novos grãos e o enfermeiro os retirava com cuidados que contrastavam com seu gigantismo.
Em casa e sem ir à aula, lembro-me da aflição de minha mãe, que eu não entendia. Mais tarde ela me diria que temera que meu rosto jamais voltasse ao normal. Em seus olhos eu vi que meu estado deveria ser lastimável e procurei o espelho do banheiro para conferir o estrago. O espelho do banheiro havia desaparecido. Também sumira o espelho da sala. O mesmo com o espelho da penteadeira de minha mãe. Ela sumira com todos os espelhos – eu não deveria ver o que acontecera com meu rosto.
O acidente resultara da quebra dos garfos da roda dianteira. A roda avançara sozinha e eu fora jogado contra as pedras nas quais meu rosto se arrastara por uns dois metros. Tornou-se uma ferida só, mas não quebrei um único osso.
Fiquei dias sem ir ao colégio e minha mãe se esforçou para me distrair. Guardo a lembrança de estar jogando bola com ela no quintal e lembro-me de ter surpreendido seu olhar aflito, me observando disfarçadamente. É, no entanto, uma boa lembrança.
Numa outra fase da vida talvez isso me afastasse das bicicletas para sempre. Mas não foi assim, pois pouco tempo depois, com nova bicicleta, lá estava eu com meus amigos realizando o que considerávamos uma proeza digna de heróis.
Tratava-se do seguinte. Subíamos até o alto do Morro da Caixa d’água, que ficava depois da linha do trem, junto à Rua São Paulo. Íamos empurrando as bicicletas – era impossível subir pedalando. Ao chegar lá em cima, em posição de largada, despencávamos morro abaixo. Era um caminho de barro cheio de curvas que descíamos em alta velocidade, sendo que a grande demonstração de coragem era retirar o pé dos pedais.
Explico: aquelas bicicletas não tinham freios manuais, o freio era no pedal. Com os pedais livres e sem freio possível, lá íamos nós, aos berros, derrapando curva após curva.
Loucura total.
Um dia um de meus amigos se perdeu numa curva e foi jogado contra um eucalipto no qual ficou dependurado. Pela inclinação do morro, ficou a uns cinco metros de altura. Foi um trabalho enorme retirá-lo de lá.
Desistimos daquele heroísmo.
Desde então, ao subir numa bicicleta, me assaltam dois sentimentos contraditórios. Um deles é a sensação deliciosa de sentir o vento, a velocidade, a fantasia de liberdade. Outro é o medo. Um medo abissal, sempre presente.
Mas não foi isso que me afastou das bicicletas. Pedalei até virar um adolescente que preferia ir ao cinema, vestir camisas pretas com gola erguida, ver filmes de novos heróis, John Wayne e Elvis Presley. Que iria fazer numa bicicleta, coisa de criança?
Hoje me pergunto: o que faço numa bicicleta, estando a infância tão distante? Pedalo com cuidado, ando pelas ciclovias, atento aos carros e aos pedestres. Não acho mais graça em arriscar meus ossos numa queda ou despencando morro abaixo. O medo me mantém atento. Mas a sensação de liberdade é a mesma. Ainda pedalo como o menino que fui. O medo é bom conselheiro e saboreio a vitória sobre ao menos um dos muitos temores que a vida nos impõe.
E, havendo caminho livre, acelero a magrela.




2 comentários:

  1. guilhermina moeckel cavalli5 de setembro de 2015 às 23:44

    História gostosa, que faz a gente voltar a um passado inocente, em que as grandes transgressões eram como essa, de descer a ladeira sem colocar os pés nos pedais da bicicleta.
    Vi várias vezes os meninos fazendo isso na rua em que morávamos, embora não fosse assim, uma ladeira! Os mais corajosos chegavam a colocar os pés entre as mãos, sobre o guidão. Às vezes, até tiravam as mãos e dirigiam com os pés.
    Como era cheia de aventuras a vida dos meninos! E nós, meninas, só olhando, espiando por detrás da cerca, na frente das casas.
    Poucas eram as meninas que possuíam bicicleta e, mesmo as que detinham esse “poder”, jamais se aventurariam... Os vestidos, sabem...
    Não tive bicicleta. Pouco me lembro, mas devo ter andado alguma vez na garupa da do meu pai. (As bicicletas atuais ainda têm aqueles porta-bagagens sobre a roda traseira?)
    Nunca andei e, na realidade, nunca nem aprendi a andar de “bici”. Isso – e aprender a tocar violão – foram planos que me prometi cumprir antes dos 40. Foram-se os 40, os 50, os... e os... também já se estão indo... Tenho a impressão de que vou ficar me devendo essas!

    ResponderExcluir
  2. Adorei, Guilhermina.
    Também nunca andei de "bici", um sonho de criança. Outro sonho, tocar piano e dançar.
    Piano, um pouco.
    Sou de uma geração privilegiada. Brincadeiras inocentes, banho de rio, andar pelo mato à procura de frutas da estação, deitar no chão nas noites de verão olhando as estrelas, brincadeira de roda, caçador, pega-pega, enquanto os adultos conversavam na porta da casa e tomavam chimarrão.
    O Roberto caiu da bicicleta. Quantos de nós não caímos de árvores ou de barrancos, porque éramos tão pequenos (as), mas tínhamos liberdade de ir e vir? Sem perigo.
    Talvez fiquemos nos devendo a realização de alguns sonhos. Mas, com certeza, realizamos muitos outros que nem imaginávamos. Quem sabe realizemos os que não conseguimos na próxima!

    ResponderExcluir