Meu pai foi criador e
personagem de uma infinidade de histórias. Algumas delas ele transformou em
crônicas publicadas em jornais, reunidas em livro editado em 2003, quando faria
cem anos. Aliás, não chegou aos cem anos contrariado, pois tinha toda a
disposição para continuar vivendo. Era olhar para ele para se perceber que não
tinha a menor intenção de morrer.
Mas, além de casos que viraram
livro, nos deixou várias historietas que viveu ou inventou – ou que nós, os filhos,
inventamos para contar a respeito dele. Era, como se vê, uma criatura ficcional.
Uma delas.
Ele era devoto de uma
miraculosa fórmula que levava o nome de loção Pindorama, que eu imaginava já extinta,
mas que o Google me informa que ainda circula por aí. Pois ele besuntava os
cabelos com aquela loção e, quando eu e meu irmão Orlando tirávamos sarro dele,
dizendo que pintava os cabelos, ele nos repreendia:
- Não pinto os cabelos.
Essa loção não é tintura. Ela faz com que os cabelos não embranqueçam.
Ao falecer, tendo
passado alguns dias no hospital sem poder aplicar a loção milagrosa, meu irmão
notou que seus cabelos branqueavam. Alguém diria que isso desmentia suas teorias
sobre a loção, mas creio que foi um último recado que nos deixou. Talvez,
fingindo de morto, nos dissesse:
- Estão vendo? Sem
loção, os cabelos ficam brancos.
O fato é que meu irmão
mais velho, Cid, fez durante muito tempo uso da mesma loção, com a qual ostentava
os cabelos negros do pai. Mas um dia ele cansou de usar com aquela gororoba e a
abandonou. Hoje ostenta uma bela cabeça branca. Só isso impede que imaginemos
que seja nosso pai redivivo. É a cópia.
Segundo uma lenda
familiar, meu pai conservou vida afora a fama de namorador incansável. Em Lajes
morou numa casa que ficava ao lado da residência de uma distinta senhora local com
quem começou um caso. Eram casas próximas, com sótão, de tal modo que as duas
janelas superiores davam de frente uma para a outra. Para escapar à vigilância
de vizinhos, ele providenciou uma taboa e, estando o marido da distinta senhora
em viagem, colocava a taboa de uma janela a outra e a atravessava qual
malabarista no meio da noite para só voltar depois de mais uma batalha amorosa gloriosamente
vencida.
Noutra ocasião, bateram
à porta de sua casa, pedindo socorro. Ele abriu a porta e deu com um homem
ferido a bala, que disse fugir de um marido traído.
- Vão me matar, disse o
homem. Por favor, me salve!
Meu pai depositou o
desconhecido debaixo da cama. Uma hora depois, um grupo armado chegou em busca
do don Juan. Meu pai abriu a porta bocejando e, ao ouvir que procuravam um fugitivo desavergonhado, reclamou ter sido acordado
por conta de uma bobagem. E enxotou a tropa de vingadores.
Esse don Juan fujão era
um espanhol chamado André Martinez, que se tornou um grande amigo de meu pai e,
de certa forma, seu devedor e espelho. Afinal, praticavam o mesmo esporte.
Anos depois, André
Martinez virou meu padrinho de crisma, uma coisa tão antiga quanto a loção
Pindorama.
Ótimas reminiscências. O avô da minha mulher também usava a antiga loção, e agora sei que ainda existe e continua a escurecer os cabelos de muitos vaidosos por aí. Fica, entretanto, a questão: vale ainda o ditado "tal pai, tal filho"?
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ResponderExcluirAhhhh. Vale, sim, Sr. Hay. O cronista que o diga.