segunda-feira, 5 de junho de 2017

O Professor de Deus




Naquela remota cidadezinha do Egito havia um homem que assumira, há muito, o papel de professor de Deus.
Ignora-se como chegara ao posto. Desde menino se julgava o dono da verdade. Alkmerd Tarphat nascera com ar de quem detinha o segredo do mundo. Rosto miúdo e rígido, carrancudo e tenso, distribuía verdades aos que topavam com ele. Pontificava a respeito de assuntos diversos e mesmo sobre aqueles com os quais entrava em contato pela primeira vez.
- Eu penso que... - era assim que iniciava suas perorações.
Havia, no entanto, algo de peculiar nas verdades enunciadas por Alkmerd: partiam sempre das mesmas premissas e chegavam sempre às mesmas conclusões. Tal monotonia argumentativa era compensada, diziam seus admiradores, pela habilidade em colocar entre premissas e conclusão um reluzente sanduíche dialético. Assim:
- Sabemos que... - o que significava: eu sei que - em última análise esta questão se resume à estrutura subjacente. E qual é? A de sempre, como já demonstrei. - E concluía: - Como vimos, salvo opiniões de energúmenos, esta questão fica explicada pela estrutura subjacente já referida.
Estivesse em questão a quadratura do círculo, o melhor pintor impressionista, a matemática moderna, o jornalismo contemporâneo, as mais desenfreadas posições sexuais, a mata Atlântica ou os destinos da humanidade, Alkmerd partia e chegava ao mesmo lugar, mergulhado na verdade absoluta.
Com o tempo, o número de seus admiradores só fez crescer e de todas as regiões do Egito e demais terras conhecidas vinham caravanas de discípulos para ouvi-lo. O que criou problemas religiosos. Mesmo não incentivando à desobediência, - já que a religião está estruturalmente determinada etc. etc., donde se conclui que etc. etc. - seus ouvintes acabavam sem tempo para a fé, pois Alkmerd falava horas seguidas, dependendo da relevância do tema e das estações do ano.
Tamanha foi a deserção de fiéis, que um dia o próprio Deus, que na época se chamava Rá, veio ouvi-lo. Deus sentou-se numa cadeirinha de palha e Alkmerd continuou falando com a mesma serenidade, como se nada de excepcional estivesse acontecendo. Ao final, Deus solicitou para estar reservadamente com ele – ou Ele, como preferia.
A entrevista foi concedida, mas antes Alkmerd impôs uma espera de mais de três horas. Humilde e paciente, Deus aproveitou para conversar com seus vizinhos de fila: uma senhora com unha encravada e um empresário endividado. Ao final da noite, foi atendido.
- O que o senhor deseja? perguntou Alkmerd, usando senhor com inicial minúscula.
- Eu, desde sempre, e isso faz tempo... – disse Deus com refinado humor, o que escapou a Alkmerd -, me torturo com algumas questões, digamos, metafísicas ou meta-mim-mesmo. Por exemplo: por que criei o mundo? Embora tenha sentido um impulso irresistível, não entendo porque rompi a solidão em que vivia desde a mais remota eternidade. E tenho outras dúvidas...
- Por gentileza, uma pergunta de cada vez. Questão de método – cortou Alkmerd.
- Entendo, resignou-se Deus, calando-se.
Alkmerd passou a dissertar. Depois da frase de abertura – eu penso que tudo se resume etc. - censurou Deus por ter agido de modo irracional, cedendo a um impulso cuja motivação desconhecia. O irracional perverte os melhores projetos, declarou. Depois do pito em Deus, fez uma extensa conclusão que, em resumo, dizia que a estrutura subjacente, em última análise etc. etc.
Deus indagou se podia fazer outra pergunta. Alkmerd consentiu.
- Há outra coisa que não entendo. Para que criei o universo e, nele, o homem? Isso me causa noites de insônia – e minhas noites, falando nisso, também são eternas...
Alkmerd, sem entender a piadinha, voltou a censurar o irracionalismo de Deus. Até um pipoqueiro, disse, sabe por que e para que faz pipoca - e atacou a argumentação com fôlego renovado. Fez a introdução, desenvolveu, concluiu.
Alguma coisa, porém, se alterara na expressão de Deus.
- Sábio Alkmerd Tarphat, o senhor acaba de me dar a mesma resposta para uma pergunta diferente. Além do mais, tudo lhe parece óbvio. A mesma estrutura subjacente...
- É a ordem universal das coisas, meu caro!
- Mas quem lhe disse isso?
- Eu mesmo.
- E isso vale para a unha encravada, a economia e a origem do universo?
- Seguramente.
Foi quando Deus se levantou, respirou fundo e disse:
- Ora, senhor Alkmerd, o senhor vá à merda.
Disparada a frase, Deus voltou aos céus, onde continuou todo-poderoso e com a consciência tranquila.






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