Naquela
remota cidadezinha do Egito havia um homem que assumira, há muito, o papel de
professor de Deus.
Ignora-se
como chegara ao posto. Desde menino se julgava o dono da verdade. Alkmerd
Tarphat nascera com ar de quem detinha o segredo do mundo. Rosto miúdo e
rígido, carrancudo e tenso, distribuía verdades aos que topavam com ele.
Pontificava a respeito de assuntos diversos e mesmo sobre aqueles com os quais
entrava em contato pela primeira vez.
- Eu
penso que... - era assim que iniciava suas perorações.
Havia,
no entanto, algo de peculiar nas verdades enunciadas por Alkmerd: partiam
sempre das mesmas premissas e chegavam sempre às mesmas conclusões. Tal
monotonia argumentativa era compensada, diziam seus admiradores, pela
habilidade em colocar entre premissas e conclusão um reluzente sanduíche
dialético. Assim:
-
Sabemos que... - o que significava: eu sei que - em última análise esta
questão se resume à estrutura subjacente. E qual é? A de sempre, como já
demonstrei. - E concluía: - Como vimos, salvo opiniões de energúmenos, esta
questão fica explicada pela estrutura subjacente já referida.
Estivesse
em questão a quadratura do círculo, o melhor pintor impressionista, a
matemática moderna, o jornalismo contemporâneo, as mais desenfreadas posições
sexuais, a mata Atlântica ou os destinos da humanidade, Alkmerd partia e
chegava ao mesmo lugar, mergulhado na verdade absoluta.
Com o
tempo, o número de seus admiradores só fez crescer e de todas as regiões do
Egito e demais terras conhecidas vinham caravanas de discípulos para ouvi-lo. O
que criou problemas religiosos. Mesmo não incentivando à desobediência, - já
que a religião está estruturalmente determinada etc. etc., donde se conclui que
etc. etc. - seus ouvintes acabavam sem tempo para a fé, pois Alkmerd falava
horas seguidas, dependendo da relevância do tema e das estações do ano.
Tamanha
foi a deserção de fiéis, que um dia o próprio Deus, que na época se chamava Rá,
veio ouvi-lo. Deus sentou-se numa cadeirinha de palha e Alkmerd continuou
falando com a mesma serenidade, como se nada de excepcional estivesse
acontecendo. Ao final, Deus solicitou para estar reservadamente com ele – ou
Ele, como preferia.
A
entrevista foi concedida, mas antes Alkmerd impôs uma espera de mais de três
horas. Humilde e paciente, Deus aproveitou para conversar com seus vizinhos de
fila: uma senhora com unha encravada e um empresário endividado. Ao final da
noite, foi atendido.
- O
que o senhor deseja? perguntou Alkmerd, usando senhor com inicial minúscula.
- Eu,
desde sempre, e isso faz tempo... – disse Deus com refinado humor, o que
escapou a Alkmerd -, me torturo com algumas questões, digamos, metafísicas ou
meta-mim-mesmo. Por exemplo: por que criei o mundo? Embora tenha sentido um
impulso irresistível, não entendo porque rompi a solidão em que vivia desde a
mais remota eternidade. E tenho outras dúvidas...
- Por
gentileza, uma pergunta de cada vez. Questão de método – cortou Alkmerd.
-
Entendo, resignou-se Deus, calando-se.
Alkmerd
passou a dissertar. Depois da frase de abertura – eu penso que tudo se resume
etc. - censurou Deus por ter agido de modo irracional, cedendo a um impulso
cuja motivação desconhecia. O irracional perverte os melhores projetos,
declarou. Depois do pito em Deus, fez uma extensa conclusão que, em resumo,
dizia que a estrutura subjacente, em última análise etc. etc.
Deus indagou
se podia fazer outra pergunta. Alkmerd consentiu.
- Há
outra coisa que não entendo. Para que criei o universo e, nele, o homem? Isso
me causa noites de insônia – e minhas noites, falando nisso, também são
eternas...
Alkmerd,
sem entender a piadinha, voltou a censurar o irracionalismo de Deus. Até um
pipoqueiro, disse, sabe por que e para que faz pipoca - e atacou a argumentação
com fôlego renovado. Fez a introdução, desenvolveu, concluiu.
Alguma
coisa, porém, se alterara na expressão de Deus.
- Sábio
Alkmerd Tarphat, o senhor acaba de me dar a mesma resposta para uma pergunta
diferente. Além do mais, tudo lhe parece óbvio. A mesma estrutura subjacente...
- É a
ordem universal das coisas, meu caro!
- Mas
quem lhe disse isso?
- Eu
mesmo.
- E
isso vale para a unha encravada, a economia e a origem do universo?
-
Seguramente.
Foi
quando Deus se levantou, respirou fundo e disse:
-
Ora, senhor Alkmerd, o senhor vá à merda.
Disparada
a frase, Deus voltou aos céus, onde continuou todo-poderoso e com a consciência
tranquila.
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