Obra de Job Koelewijn, artista holandes |
Certo dia um amigo estranhou
que eu não tivesse lido determinado livro, com o que se encheu de pose diante
na minha ignorância.
Pois dia desses fui à casa
de um novo amigo, o sambista e escritor João Carlos de Freitas e, depois de vencer
uma escada perigosa, digna de um romance policial, me vi numa enorme sala ocupada
por estantes abarrotadas de livros. Eu chegava ao Paraíso, aquele idealizado
por Borges, no qual haveria uma infinita e eterna biblioteca.
Logo percebi que não era
uma biblioteca especializada. As especializadas me dão a impressão daqueles sujeitos
a quem Deus concedeu vários talentos sendo que eles só desenvolveram um deles.
Trata-se de pecado de avareza espiritual. Merecedor da expulsão do Paraíso.
Trocando comentários sobre
os livros que desfilavam nas prateleiras, aqui e ali eu reconhecia um título,
uma edição – algumas delas raras – com aquela ingênua alma de menino que todo
amante de livros deve manter, sem o que não tem graça alguma passar a viva com
o nariz enfiado entre páginas impressas.
E o prazer da degustação:
abrir o livro, avaliar o peso das páginas, examinar a capa, a lombada e sentir,
como aconselhava o escritor e psicanalista Hélio Pelegrino, o cheiro. É pelo
cheiro que ele dizia começar a crítica de um livro. E se ele não dizia
exatamente isso, digo eu: livro bom tem cheiro bom. Papel de livro bom é macio
como o corpo da mulher amada.
Enfim, taras. Cada um tem
a sua.
Mas me perdi. Queria falar
daquele sujeito que se achava o máximo por ter lido certo livro antes de mim.
Pois o grande barato é,
quando se entra numa biblioteca como essa do Freitas, descobrir a quantidade de
livros que ainda não lemos. Estou em dívida com vários Tolstói, diversos
Dostoievski, uma prateleira de Victor Hugo, Faulkner, Hemingway etc. Ao invés
de um sentimento de burrice tomar conta de mim por não ter lido ainda esses
livros, sinto grande alegria: ainda há muito a ler, uma infinidade de livros e
autores que me escaparam vida afora.
Mesmo de Machado de Assis,
cadê que li Memorial de Aires? Pois
é, faz parte da mania. Sempre guardei a leitura desse livro para mais tarde,
como quem guarda um vinho da melhor safra para uma melhor ocasião. Um bom vinho
ou um bom livro merecem datas especiais.
Falar nisso, outra mania: quando
comecei a ler Dom Quixote, me assustou
a ideia de que um dia concluiria a leitura. Isso me parecia uma morte
anunciada. Inventei então um novo método de leitura. Pego esse livro, abro numa
página qualquer e sigo em frente. Leio até onde me der vontade e, súbito, paro.
Recoloco-o na estante e vou cuidar da vida. Um belo dia volto ao Quixote. Ao acaso,
recomeço a leitura, que não acaba jamais. Sempre leio o Quixote e sempre tenho o que ler. Meu método produz uma leitura
infinita tal como o círculo é infinito. Mas, atenção, só as grandes obras – na
cultural ocidental talvez não passem de uma centena – merecem esse tratamento. Essa
cerimônia não é para qualquer uma.
Quanto aos bobocas
competitivos, esqueça. Eles desconhecem o prazer dessa biblioteca inesgotável,
formada por tudo aquilo que ainda não lemos.
Para você é o Quixote, para mim são "Ulisses", na tradução de Houaiss, e "A morte de Virgílio", na tradução de Herbert Caro.
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