Todos
o tratavam como tio Mário, numa época em que só os irmãos dos pais eram chamados
de tios. Era casado com uma prima de minha mãe.
Um
brasileiro autenticamente português, troncudo, cabeçudo, irascível, de humor rude.
Poderia ter sido boxeador, pelo tipo e temperamento, mas era carpinteiro e
católico devoto.
Excelente
carpinteiro. Ao lado de sua modesta casa, que ele mesmo construíra, havia uma
carpintaria. Uma mesa de trabalho sempre coberta de cepilho. Pelas paredes dependurava
as ferramentas das quais ninguém podia se aproximar. Depois de anos fabricando
móveis, agora trabalhava para a Igreja de Nosso Senhor dos Passos, ao lado do
bairro Saco dos Limões, em Florianópolis.
Era
carola como só se fazem em Trás-os-Montes. Homem de sizo fechado, mãos
calejadas e fortes, tinha convicções inabaláveis, ou seja, todos os dogmas
católicos e versículos da Bíblia. Não ria jamais – ou não me lembro dele rindo.
Saía cedo para o trabalho e voltava ao final do dia, exausto.
Sentava
num banquinho colocado no quintal da casa. Levantava as pernas das calças e sua
mulher, a doce e miúda tia Celina, vinha lhe tirar as meias, deixando expostas
as imensas varizes que transformavam suas pernas num enodoado de raízes, de
veios e de veias, de nódulos e calombos – um território devastado. Tia Celina
lavava suas pernas com algodão umedecido, passava pomadas enquanto ele mirava
um ponto qualquer no infinito, fingindo não sentir dor e só movendo a cabeça
quando nós, as crianças, passávamos em correria e aos berros. Ele resmungava:
-
Essas pestinhas não ficam quietas!
Era
um homem bom? Um homem mau? Não sei. Sei que era um homem carrancudo. Com
certeza um homem triste. Tomado por convicções inamovíveis, tinha do mundo e
dos homens ideias muito bem definidas.
Por
exemplo: quando, em 20 de julho de 1969, Neil Armstrong pisou na Lua, tio Mário
saiu do mutismo e soltou a língua. A razão era essa: o feito do astronauta
abalava uma convicção que enunciava com o indicador em riste: o homem jamais
chegará à Lua! E arrematava: como é que o homem poderá pisar num astro feito
por Deus?
Eu,
abusado, bati com os pés no chão de barro do quintal:
-
Eu não estou pisando em uma coisa feita por Deus, tio Mário?
Ele
bufou. Oscilou os ombros de boxeador, mas conteve-se. Foi se trancar na
marcenaria. Americanos passeando na Lua era coisa de ateus.
-
Esse astronauta dando pulinhos é truque de Hollywood!
Mas
as lembranças mais fortes que tenho dele são as procissões. Tio Mário surgia
numa imensa bata negra, segurando uma vela gigante, na procissão de Nosso
Senhor dos Paços. No rosto, uma determinação absoluta e assustadora. Eu,
naquela noite escura, respingada pelo tremular das velas, me encolhia junto à
minha mãe. Era um espetáculo sinistro. Um Cristo esquálido retorcido na cruz,
rios de sangue brotando dos ferimentos, enquanto mulheres entoavam em tom
agônico cantos que pretendiam nos conduzir além das nuvens, ao domínio de anjos
e santos, lá onde estariam os limites em que terminavam o mundo e as coisas
sabidas pelos homens.
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