domingo, 19 de junho de 2011

A esquizofrenia e o poder



A primeira notícia, saída há algumas semanas, me deixou estarrecido. Ingênuo, pensei que produziria um tsunami na imprensa, na opinião pública, entre os chamados intelectuais. Nada aconteceu. No dia seguinte, já se falava de outra coisa que seria substituída por qualquer coisa dois dias depois.
Nessa semana, outro anúncio me deixa no mesmo estado. Nada acontecerá? Continuo o ingênuo de sempre?
No primeiro caso, o senador Sarney fez uma exposição no Senado para lembrar momentos importantes da vida parlamentar, histórias e personagens da chamada Casa. Detalhe: não havia uma só linha, uma única nota, uma solitária foto de um dos episódios mais tumultuados da vida nacional: o impeachment do Collor.
A segunda notícia diz que – também com o patrocínio de Sarney, o onipresente, e de sua parceira Dilma Rousseff, acompanhados por Collor e contando com a omissão vergonhosa de parlamentares   está para ser aprovada uma medida que estabelece que documentos tidos pelo governo como “top secret” poderão continuar assim para sempre. 
Os dois ex-presidentes devem saber o que gostariam de esconder.
Lembrei-me de um caso clássico. As fotos das quais Stalin, reescrevendo a história, apagou personagens que “traíram a causa”. Na foto, Lenin discursa para uma multidão. Ao seu lado esquerdo, num degrau, vemos um sujeito em uniforme militar que observa a multidão. É o que vemos na foto original. Na foto maquiada, o personagem na escada sumiu.
Ocorre que o nome dele era León Trotsky e seu desafeto, Stalin – futuro mandante de seu assassinato – resolveu eliminá-lo da foto. O inimigo foi defenestrado do comício.
No caso presente, não se tratou de eliminar um inimigo, mas de proteger um amigo. Color não aparece na exposição da história do Senado porque Sarney resolveu poupar o amigo de se ver ou de ser visto sendo afastado da presidência. Sabemos que o afastamento se deu por iniciativa do congresso, ainda que Collor houvesse assinado uma renúncia tática e malandra – o senado a ignorou e votou o impeachment. No entanto, na abertura da exposição, Sarney, fazendo pose de espírito evoluído e sem mágoas, declarou que aquele havia sido um episódio menor, sem grande importância, não valia a pena registrar.
No segundo caso, os governantes da hora decidirão o que deverá ficar secreto até o final dos tempos. Decreta-se assim que o Brasil perderá parte de sua memória para sempre.
Trata-se de um crime hediondo, manifestação da síndrome que assalta os que assumem qualquer nesga de poder. Um tipo muito particular de esquizofrenia: o sujeito entra num mundo paralelo no qual se sente no direito de mentir, deformar os acontecimentos, distorcer dados, escamotear informações, inventando explicações ora cínicas, ora macunaímicas, para a violência política que acaba de cometer.
É assim que os políticos profissionais se tornam imunes ao óbvio. Observem os leitores o seguinte. Quem de nós não sabe que aconteceu algo chamado mensalão? Só os muito distraídos. Todos sabíamos. Mas eles, Lula em primeiro lugar, negaram. Quem não sabe das falcatruas da privataria, do mensalão mineiro, do mensalinho, dos dólares na cueca, das ilegalidades que escondem o enriquecimento de Palocci, das manobras judiciais para evitar que Daniel Dantas vá em cana? Todos sabemos. Sabemos também que é preciso que a história do país venha à tona e que todos tenham direito de conhecê-la. No entanto, quatro ou cinco meliantes se reúnem em Brasília e, para acobertar malfeitos de ex-presidentes, querem passar uma borracha corretiva e malandra na memória nacional, já de natureza tão débil.
Por isso a exposição organizada por Sarney deveria, a meu ver, ter provocado uma verdadeira convulsão nacional contra a mentira, a farsa, o acobertamento. O mesmo deveria acontecer com essa bestialidade que representará cassar eternamente a memória nacional. Essas duas coisas, associadas, decretaram na verdade a morte de qualquer possível nação brasileira decente.
Mas ainda não foi dessa vez que o país despertou. O clima bovino venceu. Motivo pelo qual logo teremos novos Paloccis, novos mensalões, outros Daniel Dantas e mentiras para todas as serventias.
A letargia continuará. É o Brasil.

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