sexta-feira, 10 de junho de 2011

Rua XV, o livro das horas


[1]
Passei uns dias num primeiro andar de um hotel, debruçado sobre a rua XV. A primeira impressão é de uma trilha de formigas. As pessoas têm pressa na rua XV. Mesmo que caminhem isoladas, andam em bloco, tamborilando sobre o petit-pavê, deixando no ar estalidos que, mais uma vez, lembram o frenesi de formigueiro. Avançam sempre, decididas, como se soubessem para onde ir. Vinte e quatro horas de andanças, em ondas, sem cessar. Há mudanças de ritmo, é claro. Agora, quase meia-noite, são poucos os que passam aqui em frente. Mas, por uma artimanha da acústica, as vozes sobem ao primeiro andar, ainda que indistintas, e é possível saber que falam, conversam, discutem.
[2]
Ouvi os gemidos doloridos da mulher. Chorava ou gemia. Fui à janela e vi que ela era jovem, de cabelos embaraçados e talvez sujos, uma roupa de colorido desencontrado e triste. Grávida. Com o braço direito ela circunda o ventre e o apoia com a mão sobre o sexo. Geme. Arrasta a perna direita e chora e soluça. Que sofrimento é esse? Ela se arrasta, caminhando junto à parede e solta no ar o seu sofrimento. Quando já penso em chamar uma ambulância, ela se afasta da parede e, contorcendo-se de uma dor que não é apenas física, caminha na direção de um banco.
No banco está sentado um homem. Veste bermuda e camiseta. Careca, forte e jovem. A mulher se aproxima dele, sempre gemendo, senta-se a seu lado. Ele estende o braço e ela deita no seu colo. Mas está desassossegada, a infeliz, e não consegue ficar no colo do homem. Ele oferece novamente seu braço e ela, engasgada de tanto chorar, tenta se deitar de novo, mas logo se afasta. Trocam algumas palavras – na verdade, ele lhe diz algumas palavras, pois ela é só gemidos. Não consigo entender o que falam. Os dois se levantam do banco, abraçam-se e caminham pela rua, lentamente, sem trocar palavra. Abraçados, somem na escuridão.
Não explicaram porque sofriam. Apenas que sofriam muito.
[3]
Perto das dez horas da noite, um jovem com roupas cheias de correntes e cabelos em três cores – amarelo, preto e vermelho – surge na rua aos berros, perguntando ao celular: “Mas lá tem maconha, não tem?”
Fico sem saber se lá tem maconha.
[4]
Os gritos da mulher me tiraram da frente da televisão. Da janela, vi que ela estava sentada no mesmo banco, furiosa, gritando com um homem que lhe dava as costas. A voz era forte, seus gestos também, mas era impossível entender o que dizia. O homem deu uns passos, ela aumentou a gritaria, enquanto ajeitava uma blusa gasta e suja. Ela apontou o dedo para o homem. Ele abriu os braços. Ela fazia acusações, é claro. Ele apenas se esquivava. Ela aumentou o tom. O homem deu um passo na direção do banco onde ela estava, retirou dali uma mochila e deu-lhe as costas. “Vai, vai! – gritou a mulher – Vai!” Ele parou, ajeitou a mochila nas costas e, sem dizer nada, se afastou. “Mas você volta aqui, não volta? Volta ou não volta!?”
Ele some na esquina sem dizer se volta.
[5]
São dois. Dois o que? Nem sei. Um tem um corpo franzino, anda torto, roupas imundas, os cabelos formando uma carapuça desencontrada no alto da cabeça. Olhos pequenos, desmanchados em um líquido que poderia ser feito de lágrimas. O outro é maior, um pouco forte, careca. Estão sentados no banco e conversam. Todos os dias sentam-se ali, no mesmo banco, e conversam como se tratassem de segredos profundos ou de grandes especulações filosóficas. Devem ser dois pensadores e conversam em voz baixa. Ou seus segredos são formidáveis ou eles já não têm forças para falar mais alto.
[6]
A voz do homem se destacou no formigueiro. Três da tarde. Digo a mim mesmo que se trata de um vendedor, resistindo à vontade de conferir. A voz cresce, martela. Não deve ser vendedor. Agressivo demais. Afinal, vou à sacada. Lá está o homem. Tem voz forte e terá oitenta anos. Cabelo escovinha. Um terno surrado, menor do que seu corpo exige. Segura uma bíblia nas mãos e esbraveja. De sua algaravia, entendo apenas uma frase, repetida muitas vezes: “Foi o que Ele disse: no céu não tem lugar para gente imunda!”
Ele espeta o dedo no ar, mas ninguém presta atenção no que diz.

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