segunda-feira, 18 de julho de 2011

Coisas da vida literária


Há coisas estranhas acontecendo no mundo literário. Umas são cômicas, outras trágicas, outras apenas divertidas. Todas estranhas.
Uma delas: editora brasileira anuncia a edição de uma antologia de contos e crônicas para comemorar seus trinta anos. Até aí, nada de errado. Os autores interessados são convidados a participar das antologias – pagando, é claro. Mas há vagas para todos: o regulamento da editora avisa que não se trata de concurso, todos serão publicados.
O autor custear a edição de seu livro não é nenhum desatino ou novidade editorial. Mas reunião de textos sem qualquer seleção é demais. A editora deixa de ser editora, pois abre mão de uma de suas funções básicas. O autor, cheio de vaidade, joga seu dinheiro fora e ao leitor se entrega um produto que pouco lembra um livro.
Mas foi num site francês que encontrei algo ainda mais estranho, anunciado da seguinte forma: “Escrever um livro é fácil! Torne-se o herói de um romance".
Seguem as instruções: “Crie um romance personalizado no qual estejam você, seus parentes e amigos e se transforme num herói. Escolha o gênero de seu romance, responda a algumas questões e nós escreveremos o livro. Você irá recebê-lo em alguns dias".
Trata-se do livro prêt à-porter.
Quanto ao gênero, o futuro autor e herói poderá escolher: roman, insolite, suspense, espionnage, roman noir, politique fiction.
Basta clicar e surge um formulário no qual é possível preencher quadrinhos com as características dos personagens. Pede-se sexo, nome, sobrenome, dia e mês de nascimento. São exigidos alguns detalhes, tais como peso (facultativo), cor e comprimento  dos cabelos. Por que, diabos, o comprimento dos cabelos? É preciso mais: o herói usa óculos? Como você o descreveria: sonhador, um belo homem ou mulher, jovem, charmoso, talvez com um físico banal, um tipo não muito bem aquinhoado pela natureza?
Onde mora seu personagem?  Num estúdio, apartamento, vila, fazenda, castelo, hotel? Com o detalhe: o que o herói vê quando olha através da janela? A rua, os telhados, o jardim, o campo florido, o mar? E quando o personagem resolve dar um passeio, que veículo usa? Zero quilômetro ou um carro antigo?
Agora, coisas mais “profundas”. É preciso dizer se o personagem se enerva com facilidade e com frequência, se é tranquilo ou meio zen. Costuma usar uma linguagem corriqueira ou acadêmica? Quando eufórico, que tipo de exclamação – estamos na França, lembrem-se – usaria entre as seguintes: Super! Génial! Waouh! C’est de la Balle! E, quando estarrecido, qual dessas: Non d’un chien! Bon sang! ou um corriqueiro Merde!?
E suas preferências musicais? Jazz? Clássico?  Rock da pesada? Funk? Rap? Segue uma lista com mais de uma dúzia de opções. E, no caso de uma viagem, seu personagem escolheria qual dos destinos: Cuba, Ibiza, Japão ou, ça va sans dire, Brésil?
Tem companheiro? De que sexo? Dois dos amigos devem ser os mais íntimos, o que facilita a narrativa, acredito. E, como se não bastasse, um pedido macabro: querem que o interessado em ser herói indique qual de seus amigos estaria sujeito a sofrer um acidente de automóvel.
Preenchido o formulário, basta clicar num link para receber, em segundos, um primeiro esboço do romance. Cliquei, assinando-me Jean Garnier, e vieram duas páginas, das quais transcrevo o primeiro parágrafo: « Le CD glisse silencieusement dans le lecteur. Quelques secondes plus tard, un air de musique classique envahit le salon tandis que le charmant Jean Garnier laisse tomber ses kilos dans son fauteuil préféré». (“O CD roda silenciosamente no aparelho. Alguns segundos depois, um ar de música clássica invade a sala enquanto o encantador Jean Garnier deixa cair seu peso em sua poltrona preferida.”)
Entregam em seis dias. Custa em torno de 29 euros o exemplar.
Se fosse no Brasil, bastaria acrescentar que uma das amigas do personagem é tailandesa, que outra vive em Nova York, embora australiana ou neozelandesa, sendo que o personagem-herói circula continuamente pela ponte aérea São Paulo-Rio-Nova York, cidades nas quais exerce a trepidante e charmosa carreira de psicanalista.
Sucesso garantido, com resenhas e entrevistas, como diria um dos personagens secundários, “a nível de Brasil”.

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