Confesso que fico perplexo
diante do número de títulos picaretas com os quais as editoras enchem as
prateleiras das livrarias. Que fazer? Pela lógica do mercado, é isso mesmo. Sendo
isso, pelo que dizem, o que a maioria dos leitores quer ler.
Dia desses, alguém me
escreveu perguntando como poderia adquirir um livro de Jamil Snege, autor de
textos refinados. Esse leitor já percorrera todas as livrarias de sua cidade sem
nada encontrar – e não se trata de uma cidade pequena; trata-se de uma capital
e de algum porte. Porte e pose, digamos.
Fui obrigado a explicar
a esse sofrido leitor que, em primeiro lugar, ele procurara o livro no lugar
errado. De fato, uma livraria é hoje o último lugar do mundo para se procurar
um livro. Sobretudo livro que não pertença à tralha dos best-sellers ou não
seja obra de alguma celebridade televisiva.
Onde procurar, então? A
primeira opção é óbvia, mas não é levada em conta pela maioria dos leitores: ir
ao site da editora e comprar pela internet. Simplíssimo. Telefone também serve.
Seu livro será entregue em sua casa. Gostoso e quentinho, como uma pizza.
A segunda opção é cada
vez mais usada pelos leitores desesperados: procurem num sebo. É nos sebos que
encontramos os melhores títulos, tanto os clássicos quanto os editados há mais
de um ano. Não insista com as livrarias. As pobres coitadas já não dão conta de
vender livros de ocasião, de autoajuda, de “espiritualidade”, e você querendo
que elas se ocupem com títulos culturalmente importantes. Como treinar para
tanto atendentes pegos a laço e que jamais abriram um livro? Demais para uma
livraria.
Falar em atendentes, dia
desses aguardei quatro tentativas para que um deles digitasse corretamente Eça
de Queiroz. Uma sucessão de equívocos. É Sá de Queiroz. Essa de Queiroz. Éssa
de Queiroz. Sá de Queiroz. Foi quando soletrei. Saiu Eca de Queiroz, mas isso é
culpa da configuração do teclado ou talvez mais uma ironia do escriba português.
Como passei a vida
remando contra a maré – e já não me resta ânimo nem paciência para remar a
favor – fico com uma pulga inquietante atrás da orelha. Por exemplo: há no
mercado uma série de livros cujos títulos são variações a respeito da equação
marqueteira seguinte: “1001 coisas a [incógnita] antes de morrer”.
A variedade é infinita:
ler, viajar, conhecer, ver, rever, citar, esquecer. Imagino que venda horrores
– horrores equivalentes às séries dos vampiros, monstros, extraterrestres,
gnomos, espíritos do bem e do mal, com as quais as prateleiras também andam
cheias. Sem falar nas joias do pensamento picaretamente correto que produzem
bons conselhos e mediocridade ao alcance de todos.
Mas a equação marqueteira
me deixa perplexo, repito. Na minha lógica simplista, tudo que qualquer ser
humano possa fazer será necessariamente “antes de morrer”. Ou não?
Pois, remando contra a
maré, vou em frente. E depois de morrer? Pronto, lá fiquei matutando para saber
o que farei depois de morrer, eu que já nem sei o que fazer antes de.
Como aprendi com Oscar
Wilde que se deve resistir a tudo, menos às tentações, concluí que gostaria de
ler. Foi ao menos a primeira coisa que me passou pela cabeça. Portanto, havendo
possibilidade de fazer algo após a morte, se lá no paraíso prometido não houver
uma boa biblioteca, tô fora.
Me perdi. Queria comentar
as tais coisas a fazer antes de morrer e me perdi, pois esse truque marqueteiro
me parece aflitivo. Mais ou menos como aquelas mães que dizem aos filhos: come
tudo que está no prato senão dou a comida para o cachorro. Então, a criança come.
Uma competição com o cachorro, ou, para manter o clima dantesco do tema, com o Cão.
Que está ali, na porta que se abre (ou fecha) para o além.
Então, vamos fazer o
que? Ver, viajar, conhecer coisas. Acumular coisas. Amontoar coisas. Cidades em
cartões postais ou em cartões de memória, onde ficarão sepultadas para sempre.
Empanturrar-se de coisas vistas, ouvidas, faladas, comidas, bebidas. Que
coisas? Não importa. Que sejam muitas coisas, que é uma maneira de projetar
para após a morte um mundo igual ao fantástico mundo do consumo que se viveu
antes dela. Tudo vale a pena se a pança não é pequena, deve ser o lema.
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