segunda-feira, 9 de abril de 2012

Que língua é essa?


A primeira vez que ouvi falar em “voucher” foi numa conversa com uma dessas telefonistas de hotel com voz de robô assexuado. Fiz uma reserva, mandei comprovante de depósito e ela me disse que me mandaria o voucher.

Distraído, levei um susto. Eu não havia encomendado nada, muito menos uma coisa que se chamasse voucher. Perguntei do que se tratava, mas ela apenas repetiu:

- O voucher, Senhor. Estaremos enviando o voucher.

Considerando o gerundismo da moça, me ocorreu que deveria ser palavra inglesa. Como minha lembrança era vaga, fui ao dicionário e encontrei:

Voucher – sentido (1) responsável, fiador. (2) comprovante, prova. (3) recibo, certificado, certidão. (4) vale, ticket. Comprovar, dar recibo, certificado ou comprovante. Comprovar com documento.

Tratava-se, portanto, do antigo e conhecidíssimo comprovante, o simpático recibo desde lusitanas eras. Acontece que a palavrinha virou outra das pragas de linguagem que correm pelo Brasil corporativo. Hoje mesmo, numa ligação a um banco, me pareceu reencontrar a mesma telefonista-robô com voz assexuada.

- O senhor vai estar recebendo um voucher – me disse ela.

Fico pensando por qual razão trocar o liso, claro e direto recibo ou comprovante por um trambolho como voucher? Não entendo. Não houvesse palavra correspondente em português, tudo bem. Mas, recibo, comprovante, nada mais corriqueiro, prático e simples. Voucher?

Esclareço aos leitores que não faço parte dos puristas que querem impedir a incorporação de palavras estrangeiras ao vocabulário nacional. Nada a ver com o senador Aldo Rebelo, esse triste dom Quixote da pureza do português castiço, nem com um certo ex-governador do Paraná que pretendia decretar o fim de estrangeirismos em anúncios e placas. Sei, por pensar com meus próprios neurônios, que todas as línguas fazem incorporações, aquisições, canibalismo saudável e promíscuo, e que, analisadas com o passar do tempo, todas roubam umas das outras. Nenhum purismo patrioteiro, portanto.

Mas sei também que existem as bobagens, os cacoetes marcados por mera ignorância ou simples pedantismo. No caso, algum executivo gerente de hotel dos EUA deve ter vindo fazer palestras corporativas no Brasil e, no meio do falatório, largou um voucher – que é o comprovante lá deles, não mais que isso – e os deslumbrados daqui descobriram o voucher. A tribo tupiniquim tem dessas coisas.

Certa ocasião, um amigo me provocou defendendo o uso do verbo deletar em português sob a alegação de que não tínhamos palavra correspondente. Era um rapaz inteligente e simpático, mas iludido pela informática. Tive que explicar a ele que havia – além do óbvio apagar – o verbo delir, que significa exatamente apagar, ou seja, exatamente o mesmo que deletar. E mais: deletar tem origem latina. Nunca ouvira falar em “delenda Cartago”? E deleatur? Enfim, pelo que me dizem, deletar vem do latim deletus, particípio passado do verbo deleo. Onde a língua inglesa foi buscá-lo.

Nada contra. Como temos os verbos apagar e delir, deletar só entrou em circulação por conta de uma tecla de computador. Tudo bem. Soa como latim.

Enfim, se é preciso entender que as trocas entre línguas diferentes são justíssimas, é preciso também entender que a língua é um campo de batalha. Tanto é legítimo fazer aquisições, como é legítimo lutar contra aquisições tolas.

O mesmo acontece com palavras portuguesas que, por automatismo, passam a ser uma espécie de cacoete, como no modismo chatíssimo do uso de “diferenciado”. Ora, diferenciado quer dizer apenas diferente, não mais. No entanto, o uso atual força a palavra a significar que se trata de uma qualidade superior. Comentaristas de futebol adoram dizer que um craque é diferenciado. Ora, um perna-de-pau também é diferenciado por ser diferente dos demais em sua ruindade com a bola.

No mínimo, esses tipos que usam demasiado a palavra diferenciado me parecem muito pouco diferenciados. Os que usam voucher, idem.

Não passo recibo.

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