domingo, 12 de agosto de 2012

A verdade pode ser o óbvio




É um axioma quase religioso cultivado pelos historiadores: para emergir, a verdade histórica exige que o tempo passe. Só assim, com a distância, se poderá extrair essa pérola rara. No resto do mundo pode ser assim. No Brasil, país que Tom Jobim dizia ser de ponta-cabeça, os escândalos políticos costumam ter tal claridade que, se mexermos muito, ficam turvos e escondem a verdade.
Para tanto, temos a legislação deliberadamente barroca e, depois, as tropas de advogados, os fazedores de fumaça, gerando recursos, liminares, mandados, chicanas, golpes sentimentais, rasteiras, pernadas etc. Seja para defender o deputado bêbado que dirigia criminosamente, seja para confortar quem escondeu dólares na cueca. Transformamos o direito de defesa em defesa da impunidade.
Sendo país de ponta-cabeça, o Brasil coleciona vários casos nos quais a verdade é óbvia. Haverá alguém que, sem má fé ou enorme desinformação, não saiba que houve tortura e crime durante a ditadura militar? Mortes, perseguições, torturas, banimentos, demissões injustas. E é claro que os generais sabiam de tudo e assinavam em baixo. No entanto, houve tempo em que nem se podia falar nisso. Agora, há uma Comissão da Verdade pretendendo extrair a fórceps a tal verdade. Que todos conhecemos, é óbvio.
No mensalão, ocorre o mesmo. Todos sabemos o que houve. Desde a propina entregue a um dirigente dos Correios até os dólares viajando em aviões e invólucros suspeitos. O mesmo ocorre, em caso recente, que pretendia fazer fumaça sobre o Mensalão, com essa lamentável criatura chamada Cachoeira. Sabemos dele tanto quanto sabíamos das trapalhadas de Collor e das bandalheiras de seu assecla, PC Farias. Houve desvio de dinheiro público, compra de votos, formação de quadrilha, corrupção de parlamentares, prepotência, sede de poder.
No entanto, os fazedores de fumaça buscam encobrir tudo. O que me preocupa. Lembrando o conto célebre, observo que, quanto aos quarenta ladrões, o relato do procurador geral da República, Roberto Gurgel, foi preciso e brilhante. Mas eu pergunto: e o Ali Babá? Cadê o Ali Babá?
Num romance policial magnífico – O homem que foi sexta-feira – Chesterton, o escritor inglês, mostra como tudo se complica no curso de uma investigação, mas, ao final, a verdade vence, porque “Deus se esconde no óbvio”. É uma crença generosa.
Por isso proponho aos leitores um teste de futurologia. Em algum lugar do futuro – no ano de 2112, digamos – um historiador publicará um livro chamado, Redescobrindo a Verdade do Mensalão – cem anos passados (Edição Gráfica do Senado/ABL, 589 páginas, capa dura), obra que conclui com as seguintes palavras:
“Nossas pesquisas nos levaram a rever o Mensalão a partir de documentos nunca antes compulsados na história desse país, os quais revelam que o então presidente Lula não sabia de nada, pois se mostrou indignado e atônito quando o caso veio à baila. Ele desconhecia qualquer formação de quadrilha – denominação açodadamente usada pelo representante do Ministério Público, Roberto Gurgel – pela simples razão de que não havia quadrilha alguma formada ou em formação. O ínclito senhor José Dirceu, injustamente indiciado, não só era um homem reto e probo como, garantem os documentos ora encontrados, era um democrata sem ambições políticas. Os demais acusados também agiram limpamente. Um deles era cantor de ópera. A diretora de um banco era apenas uma bailarina frustrada. Outra acusada, nas palavras de um advogado, era uma mequetrefe. O tesoureiro era muito zeloso. Não subornaram, não compraram votos, não trocaram favores, não forjaram empréstimos bancários, não lavaram dinheiro e nem levantaram falsos testemunhos. Nesse restabelecimento da Verdade também cumpre registrar, cem anos depois, em paralelo ao caso Mensalão, que o senhor Paulo Maluf, ao contrário da boataria, não tinha conta bancária alguma em paraísos fiscais. E o senhor Carlos Augusto Ramos (dito Cachoeira), ao invés de ser um contraventor do jogo do bicho, na verdade apenas divertia os amigos nos finais de semana com um bingo inocente jogado na garagem de sua modesta residência, distribuindo brindes aos vencedores. Eis como a História levou cem anos para encontrar os documentos comprobatórios, restabelecendo a Verdade sobre o Mensalão e arredores.”
Essas seriam as palavras do futuro historiador. Com cem anos de distanciamento, o leitor acha que são plausíveis?

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