Niemeyer - desenho Roberto Gomes (2005) |
Estávamos tão acostumados com a
presença de Oscar Niemeyer que chegamos a nos convencer de que era imortal. Não
no sentido figurado, daquela imortalidade postiça de que pensam gozar os
acadêmicos, mas duma imortalidade de fato e de direito, em carne e osso. Ele
seria imorrível, digamos. Mas, cumprindo a premissa do silogismo que postula ser
todo homem mortal, Niemeyer morreu.
E lá ficamos nós numa orfandade avassaladora.
Mas de que orfandade se trata? Não da
perda de um homem e de seus feitos, mas de toda uma época e das realizações que
ela tornou possíveis. Por exemplo: um tempo em que ainda éramos adolescentes e havia
um presidente inteligente, de humor refinado, além de bom dançarino de valsas,
em contraste com as carrancas ferozes dos militares da época da ditadura. Ou em
contraste com outras carrancas posteriores, ora boçais, ora vociferantes, ora
de boca dura.
Um amigo arquiteto anda desde então inconsolável,
suspirando saudoso a lembrar de fatos relacionados ao período em que entrou
para a faculdade. O motivo é simples: foi fazer arquitetura inspirado em
Niemeyer.
Da arquitetura à bossa nova, quantas
vocações nasceram naquele momento? Confesso que também imaginei um dia fazer
arquitetura, mas descobri que, além de ter outros interesses, meu único ponto a
favor era o gosto pelo desenho. Para chegar ao curso de arquitetura deveria
enfrentar provas de física e matemática. Fui cantar em outra freguesia.
Mas a morte de Niemeyer não pode ser
lamentada como fato em si, já que ele viveu gloriosos 105 anos e sua vida foi
completa. E não se pense que não lamento equívocos seus, o mais grave sendo a
ortodoxia marxista, o que o coloca fora de foco em certos momentos. O que me
veio à mente não foi nenhuma frustração pessoal ou profissional, mas uma
frustração mais profunda, que não deve ser só minha. Fiquei pensando em coisa
mais incômoda.
Temos na história brasileira figuras
notáveis que merecem respeito e reverência. São pessoas que unem talento e
dedicação, dons naturais e disciplina, além de serem, na sua atuação
profissional e pessoal, absolutamente íntegros, seres humanos de verdade. E,
sendo seres humanos de verdade, têm seus eventuais defeitos, sem o que não
seriam verdadeiros.
Foi quando comecei a fazer uma lista – sujeita a contestações como
qualquer lista do gênero, os leitores fiquem a vontade – destas figuras que
contradizem o complexo de vira-lata que, segundo Nelson Rodrigues, assola a
mente dos brasileiros. Dou, por falta de espaço, um resumo dessa lista.
Pensem na literatura. Além do onipresente Machado de Assis, temos Mário
de Andrade e Oswald de Andrade. Não é pouco. Manoel Bandeira, Carlos Drummond
de Andrade, João Cabral de Mello Neto. Que tal Guimarães Rosa? E Graciliano
Ramos e Cecília Meireles?
Na música, Noel Rosa, Pixinguinha e Cartola. Villa Lobos, é claro. Tom
Jobim, João Gilberto, João Donato, Moacir Santos, Vinicius, Baden. A Tropicália.
Caetano e Chico e Gil e Aldir Blanc e João Bosco. O rock brasileiro. Pensem na
quantidade de nomes que deixo de citar por falta de espaço.
Não só na criação artística temos figuras admiráveis. Há sociólogos como
Florestan Fernandes, antropólogos como Darcy Ribeiro, historiadores como Sérgio
Buarque de Holanda, além do multifacetado Gilberto Freyre. Diplomatas como o Barão
do Rio Branco, empreendedores como o Barão de Mauá. Humoristas como Millôr
Fernandes. De quebra, um José Bonifácio e um Oswaldo Cruz.
Chego a um exemplo máximo: o do açougueiro Luís Amorim, que criou uma
biblioteca pública no seu estabelecimento, em Brasília, reunindo seus livros e
outros que arrematou em doação. Sem tostão de dinheiro público, criou um espaço
comunitário de leitura e debates, exemplo que gerou várias iniciativas
semelhantes.
O leitor estará se perguntando onde quero chegar. Nem eu sei. Mas, ao
pensar em tanta gente capaz de
produzir conhecimento, arte, indústria, urbanismo e arquitetura, medicina e educação,
me deixa furioso o seguinte: por qual maldição somos obrigados a perder tempo –
na vida política e nos escândalos quase diários – com uns tipos de meia tigela,
com essas ratazanas que se fartam com dinheiro público, com esses farsantes que
engabelam a população, com esses anões morais e políticos que infelicitam o
país?
Porque
continuamos sendo governados por delinquentes?
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