sexta-feira, 12 de abril de 2013

Bocage, o poeta



 

Bocage, o poeta maldito. Bocage, o pornográfico. Bocage, o boca suja. Bocage, o piadista grosseiro. Tudo isso já foi dito a respeito de Bocage. Algumas dessas avaliações foram feitas pela Santa Inquisição, que o perseguiu ao longo da vida, curta, só quarenta anos.
Infelizmente, a fama que o nome Bocage alcançou fez dele um ícone: o imoral. A partir disso, todos se sentem dispensados de ler sua obra, pois imaginam que já sabem muito bem o que poderão encontrar lá.
Enganam-se. Olavo Bilac, por exemplo, o considerava “o melhor metrificador da poesia portuguesa” – diz ele, e acrescenta: “Em Portugal, a arte de fazer versos chegou ao apogeu com Bocage e depois dele decaiu”.
A fama de boca suja se deve a seus assim chamados “poemas marginais”. Nunca entendi porque seriam marginais, mas ocorre que neles encontramos o “baixo calão” que apavora puritanos.
Mas vamos a dois sonetos de Bocage em que ele se autorretrata. É um bom começo:

RETRATO PRÓPRIO

Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão de altura,
Triste de face, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno:

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno:

Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades:

Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.


SEGUNDO RETRATO

De cerúleo gabão, não bem coberto,
Passeia em Santarém chuchado moço,
Mantido às vezes de sucinto almoço,
De ceia casual, jantar incerto:

Dos esburgados peitos quase aberto,
Versos impinge por miúdo e grosso;
E do que em frase vil chamam caroço,
Se o quer, é vox clamantis in deserto:

Pede às moças ternura, e dão-lhe motes!
Que tendo um coração como estalage,
Vão nele acomodando a mil pexotes:

Sabes, leitor, quem sofre tanto ultraje,
Cercado de um tropel de franchinotes?
É o autor do soneto; – é o Bocage!



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