Bocage, o poeta
maldito. Bocage, o pornográfico. Bocage, o boca suja. Bocage, o piadista grosseiro.
Tudo isso já foi dito a respeito de Bocage. Algumas dessas avaliações foram
feitas pela Santa Inquisição, que o perseguiu ao longo da vida, curta, só
quarenta anos.
Infelizmente, a fama
que o nome Bocage alcançou fez dele um ícone: o imoral. A partir disso, todos se
sentem dispensados de ler sua obra, pois imaginam que já sabem muito bem o que
poderão encontrar lá.
Enganam-se. Olavo
Bilac, por exemplo, o considerava “o melhor metrificador da poesia portuguesa” –
diz ele, e acrescenta: “Em Portugal, a arte de fazer versos chegou ao apogeu com
Bocage e depois dele decaiu”.
A fama de boca suja se
deve a seus assim chamados “poemas marginais”. Nunca entendi porque seriam
marginais, mas ocorre que neles encontramos o “baixo calão” que apavora puritanos.
Mas vamos a dois
sonetos de Bocage em que ele se autorretrata. É um bom começo:
RETRATO
PRÓPRIO
Magro, de olhos
azuis, carão moreno,
Bem servido de
pés, meão de altura,
Triste de face,
o mesmo de figura,
Nariz alto no
meio, e não pequeno:
Incapaz de
assistir num só terreno,
Mais propenso ao
furor do que à ternura;
Bebendo em
níveas mãos por taça escura
De zelos
infernais letal veneno:
Devoto
incensador de mil deidades
(Digo, de moças
mil) num só momento,
E somente no altar
amando os frades:
Eis Bocage, em
quem luz algum talento;
Saíram dele
mesmo estas verdades
Num dia em que
se achou mais pachorrento.
SEGUNDO
RETRATO
De cerúleo
gabão, não bem coberto,
Passeia em
Santarém chuchado moço,
Mantido às vezes
de sucinto almoço,
De ceia casual,
jantar incerto:
Dos esburgados
peitos quase aberto,
Versos impinge
por miúdo e grosso;
E do que em
frase vil chamam caroço,
Se o quer, é vox
clamantis in deserto:
Pede às moças
ternura, e dão-lhe motes!
Que tendo um
coração como estalage,
Vão nele
acomodando a mil pexotes:
Sabes, leitor, quem
sofre tanto ultraje,
Cercado de um
tropel de franchinotes?
É o autor do
soneto; – é o Bocage!
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