Numa dessas horas tardias, quando se imagina que tudo está completo, o
homem fez uns cálculos estranhos e concluiu que progredia. Não resolvera
problemas de ordem internacional, não colocara o ponto final na polêmica entre
a teoria quântica e a da relatividade, nem conseguira fazer com que o cachorro
da casa vizinha latisse menos nas noites de lua. Mas conseguira alguns feitos:
consertara o armário da cozinha, colocara a correspondência em ordem e dormia
melhor.
E aprendera a assobiar, o que jamais fizera ao longo da vida.
Quando se deu conta de que estava assobiando – numa manhã fria, a caminho
da padaria – sentiu uma emoção enorme. Por alguns momentos nem percebeu que
estava assobiando. Era uma canção modesta, simples e repetitiva – mas era
música, pensou em sua defesa. Em inúmeras ocasiões tentara aprender a assobiar.
Inútil. Perdia-se num sopro desconexo, fragmentado. Era atroz, pensava ele. E
desistia. Mas não para sempre. Tempos depois, voltava às tentativas. Ficava
muito longe de um desempenho sequer razoável, mas não se dava por derrotado. Um
dia, quem sabe.
Pois nesse dia conseguiu. Foi há uma semana. A caminho da padaria, o assobio,
meio desajeitado, inventou uma melodia e fluiu por conta própria. Ele comprou
pão, escolheu manteiga e queijo assobiando sem parar, pouco se importando se
escandalizava os circunspectos fregueses a sua volta. Escandalizava? Alguns,
talvez. De certo pensavam que ele era um maluco ou um exibicionista. Pois que
se danassem. Assobiava e estava resolvido. Havia vencido uma grande batalha em
sua vida e não é todos os dias que se pode comemorar uma vitória desse porte.
Colocou o assobio numa lista na qual anotava suas grandes e pequenas vitórias.
Com tantos feitos a seu favor e um sorriso nos lábios, ele se debruçou na
janela do apartamento e, assobiando o que poderia ser uma modinha antiga,
pensou que lhe faltava outra conquista, talvez tão importante quando a questão
do assobio. Tratava-se de seu coração. Nada a ver com sístoles e diástoles,
pressão sanguínea ou níveis de hemácias e outras dessas coisas que fazem a
alegria dos médicos. Não pensava no coração, órgão descontrolado e aflito,
massa pulsante e agoniada que bombeava a vida.
Como conquistara, com o assobio, o direito de pensar coisas banais,
estava atento a esse coração imaginário e volátil, do qual os poetas tanto
falam e que ele pensava já não ter mais em seu peito. Os órgãos imaginários têm
esse parentesco com aqueles que a vã fisiologia examina empiricamente. Deixados
de lado, se fragilizam, atrofiam, viram fumaça.
Além disso, quando se trata de coração, lá pelas tantas a gente,
distraidamente, deixa que ele se exponha ao ar livre e, ao invés de afagos,
recebe um golpe de punhal de prata.
Assim imaginava seu coração quando, em horas tardias, dessas que parecem
anunciar a morte ou o renascimento, tentava entender como aprendera a assobiar.
Olhou para a rua deserta, escutou o latido do cachorro na casa vizinha, e se
perguntou:
- Y ahora?
Outra de suas manias. Quando metido em algum impasse, sacava seus poucos
conhecimentos de outras línguas e lascava uma expressão salvadora. Pulava do
inglês para o francês, desse para o espanhol, sendo que raramente se aventurava
no alemão.
Foi quando descobriu um gato tardio exercitando suas habilidades em cima
do muro. Agora o cachorro enlouquece, pensou. O gato avançou pelo muro,
atravessou a lateral do terreno, mirando com desprezo o cachorro que se jogava
de um lado para outro, esgoelando-se na tentativa inútil de alcançá-lo.
Quando o gato já ia longe e o cachorro, exausto, parou de latir, ele
fechou a janela e decidiu que suas tarefas naquele dia estavam cumpridas.
Melhor dormir. Mas dormiu pouco. Acordou duas horas depois, com o coração aos
pulos, como um cão que latisse para a lua, em meio a um sonho no qual um gato
atrevido, ronronando a melodia que ele assobiara a caminho da padaria, repetia,
galhofeiro:
- What do you want… want…
want?
O problema é que conhecia pouco a língua inglesa, enquanto seu coração,
esse, ignorava até mesmo as línguas nas quais ele era capaz de assobiar.
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