A morte de algumas pessoas
nos deixa com a sensação de que perdemos um companheiro de viagem. Elas se
tornaram parte de nossas vidas e passaram a nos guiar ou a nos desorientar em
momentos decisivos. Garcia Márquez era para mim um desses companheiros de
viagem.
Na década de 1970, dois autores
me abalaram profundamente: Guimarães Rosa e Garcia Márquez. A leitura de Grande Sertão: Veredas foi para mim um
terremoto literário. Garcia Márquez, com Cem
anos de solidão, me produziu abalo idêntico, ainda que por razões diversas.
Depois disso, nenhum autor
me causou abalo igual.
No dia 17 de abril, quando
vim a saber da morte de Garcia Márquez, me passou pela cabeça que a melhor
homenagem a se fazer a um escritor é ler sua obra. Bisbilhotei minha biblioteca
a procura de seus livros. Entre reler e ler, escolhi ler um de seus livros. Não
é uma de suas grandes obras, mas é um livro exemplar.
Trata-se de Relato de um náufrago, que ele escreveu quando
jovem jornalista, em 1955, aos 28 anos. Foi publicado em quatorze episódios no
jornal El Espectador, de Bogotá.
Minha escolha, portanto, foi arbitrária. Tratava-se de um livro que eu havia abandonado
na fila de leituras, como fazemos com muitos livros.
O relato é escrito na
primeira pessoa, sendo o narrador Luís Alexandre Velasco, o único sobrevivente
dos oito marinheiros que foram arremessados ao mar pela carga levada pelo
destroier Caldas no dia 28 de
fevereiro de 1955. Isso permite ao jovem Garcia Márquez exercitar seus dons de narrador.
Notamos ao longo do texto não apenas o jornalista meticuloso e exato, que
seguiu com fidelidade o relato de Alexandre Velasco, mas também o escritor que
sabe dar a coloração precisa a uma cena. Aqui e ali cintilam expressões que
podemos relacionar com o que esse mago da escrita faria anos depois.
A história é assombrosa. O
destroier da marinha colombiana viajava de Mobile, no Alabama, a Cartagena
quando foi surpreendido por fortes ventos, cerca de duas horas antes de chegar
a seu destino. Na versão oficial do governo colombiano, teria havido uma
tormenta que jogara os marinheiros ao mar. Alexandre desmentiu: “Não houve
tormenta alguma”. Os ventos fortes fizeram com que a carga empilhada no navio
se deslocasse, arremessando os marinheiros ao mar. Era carga proibida em
destroieres: geladeiras, fogões, televisores, máquinas de lavar – em resumo, contrabando.
Por conta do excesso de peso, o navio não pode voltar para socorrer os possíveis
sobreviventes.
Mas Alexandre salvou-se.
Agarrou-se a um bote que despencou no mar, tentou inutilmente salvar seus
companheiros e passou dez dias à deriva, lutando contra a violência das ondas e
sofrendo ataque de tubarões. Sem água e sem qualquer comida, ficou com o corpo
em chagas, castigado pelo sol. Conseguiu pegar uma gaivota, mas não teve
coragem de comê-la – um marinheiro não mata uma gaivota, lhe ensinara um amigo.
Ele a matou, mas não comeu. Quando afinal consegue pegar um peixe e come um
pouco de sua carne, se descuida ao lavá-lo na água – foi o que bastou para que
um tubarão arrancasse o peixe de suas mãos. Um pouco mais e levaria seu braço.
O que é notável é que o
texto não esconde nada desde o início. Já sabemos o que acontecerá, quando
acontecerá, quantos dias ficará perdido no mar e que, ao final, alcançará terra
firme. O suspense, portanto, lembra Hitchcock: os leitores sabem o que irá
acontecer, mas o personagem não sabia. E essa tensão é mantida até a linha
final. Nisso Garcia Márquez já se mostra um mestre da narrativa.
O conteúdo humano é
notável. Trata-se da luta pela sobrevivência, da luta pela vida de uma forma
direta, crua, sem retoques. Luta contra o medo, contra o mar revolto, o terror
da noite, a impiedade do sol abrasador, a sede infernal, a fome corroendo suas
entranhas. Nesse sentido, esse livro se junta a relatos ficcionais ou não que
mostram a capacidade que mal suspeitamos que o ser humano possa revelar em
situações extremas. Alexandre, depois de dez dias de flagelo, desfalecido no
fundo do bote e pedindo para morrer, ainda encontra forças para nadar dois
quilômetros quando avista a terra. Um épico, portanto.
Para o governo do general
Gustavo Rojas Pinilla – ditador da Colômbia entre 1953 e 1957, responsável por
assassinatos em massa – o retorno de Alexandre foi um meio de fabricar um herói
nacional. Foi levado a fazer palestras, gravou propagandas da marca do relógio
que trazia no pulso e que não sofreu danos, do sapato que resistiu a suas
tentativas de comê-lo. Usado, Alexandre seria em seguida abandonado à própria
sorte. Foi quando decidiu vender sua história, a verdadeira, para El Espectador. Garcia Márquez, “repórter
de plantão”, foi escalado para entrevistá-lo e produzir a matéria.
Saiu-se com um texto
exemplar de jornalismo e de construção literária, embora não seja uma obra
excepcional – mas isso Garcia Márquez faria mais tarde várias vezes.
E esse detalhe não escapou
a seu humor refinado. No prefácio, ironizando a insistência dos editores para
que o texto fosse publicado em livro, ele anota: “Causa-me depressão a ideia de
que aos editores não interessa tanto o mérito do texto como o nome que o
assina, que, para desgosto meu, é o de um escritor da moda”.
Tinha também esse lado
demolidor: das mentiras dos ditadores, o que lhe custou o exílio, e das
patifarias dos editores que viam nele um produtor de cifrões, o que lhe causou
chateações ao longo da vida.
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