domingo, 13 de abril de 2014

O túnel, o trem, a filosofia




A turma de filosofia era composta por uns vinte e poucos alunos ou, no ato falho cometido por uma aluna: “éramos umas oito moças, uns doze rapazes e mais uns nove seminaristas”.
O professor era padre João Zelesny. Figura inesquecível. Grandalhão. Sempre com a mesma batina negra e surrada, lavada com pouca frequência. Suava muito. Trazia um lenço amarrotado nas mãos com o qual enxugava o rosto, assoava o nariz e apagava o quadro negro na falta de um apagador nas redondezas. Sólido exemplar iugoslavo que enfiara cabeça adentro a filosofia de Tomás de Aquino, defendida contra tudo e contra todos.
Entrava na sala dando um bom dia feroz e se plantava no alto do estrado. De onde lascava, fazendo o sinal da cruz:
- Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo!
E todos rezavam o Pai Nosso.
Era o início do curso de Ontologia e eu havia faltado às duas primeiras semanas de aula. Não conhecia o professor e fui o único a não ficar de pé de imediato. Levantei aos poucos, incrédulo e incréu, sem entender aquela oração num curso de filosofia.
Terminada a oração, fazia a chamada e despejava um esquema tomista no quadro. Desenvolvia a aula com a aflição avassaladora da qual só sujeitos grandalhões são capazes.
Era respeitado, mesmo pelos que discordavam dele. Defendia com competência e honestidade suas crenças. Passamos por um ano de filosofia aristotélico-tomista.
Certo dia João Zelesny surgiu na classe com uma novidade. Era uma publicação mimeografada (aos jovens informatizados de hoje, explico: cópias produzidas num aparelho pré-diluviano chamado mimeógrafo, precursor das atuais impressoras). Não me lembro do autor; os textos levavam o título de “O alcance metafísico dos sentidos”.
Eram textos ótimos. Reflexões fenomenológicas sobre os cinco sentidos que ao final eram conciliadas com o tomismo, é claro.
Por exemplo, o olhar. Vemos os outros, mas também nos mostramos ao olhar. Percebemos se o outro nos entende ou respeita, mas também se o outro lê em nossos olhos o que sentimos. A audição: ouvimos o outro e esse é o sentido mais generoso. Damos ao outro o direito de falar, respeitamos quem ele é. Esse capítulo do ouvir foi o que mais me impressionou, pois muitos gostam de falar e poucos de ouvir. O ouvir é generoso e paciente – ao contrário do falar que costuma ser ególatra e alheio ao que o outro sente ou pensa.
Se não estou inventando, era isso. As reflexões fechavam com a fórmula:
- Os sentidos são uma abertura para o outro!
O outro e a abertura estavam na moda.
- A Filosofia é uma abertura para o mundo!
Certo dia padre João entrou na sala e no quadro negro havia um desenho esquemático: um trilho entrando numa ogiva. Abaixo, em letras garrafais:
- O túnel é uma abertura para o trem!
Esbravejou de todos os modos que sua condição religiosa permitia e saiu da sala exigindo que o culpado se apresentasse.
Não creio que tenha se apresentado. Sei que o culpado se tornou monge beneditino conhecido por sua atuação pastoral. Além da prática política, é claro. Mas não digo seu nome. Delação é um crime muito feio, já ensinava são Tomás de Aquino.





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