domingo, 3 de agosto de 2014

Silêncio parado no ar





Quase meia-noite. Caminho pela avenida que margeia a praia.
De algum lugar nas redondezas ouço sons abafados. Sons de música e de conversas - o que inclui vozes de crianças, risadas. Mas o que sinto é um profundo silêncio. Há silêncio nas ruas, nas árvores, no ar. As calçadas e as pedras estão em silêncio. Não apenas ausência de sons ou ruídos – um silêncio concreto, audível.
Um silêncio parado no ar.
Até o mar se limita a um ronco surdo, afastado, que alarga a faixa de areia.
A praia esteve deserta nesse dia em que fez sol e frio. Apenas alguns surfistas se atreveram a enfrentar a água gelada e o vento. Estiveram ali durante a manhã e a tarde, agarrados às pranchas de surf, cavalgando as ondas. Na maior parte do tempo apenas esperavam. Não entendo como suportam. Mas suportam e se divertem. E isso basta.
Sou o único a caminhar por aqui. Saí do hotel e vim para a avenida gastar uma meia hora que ainda me resta antes de dormir. Na verdade, não queria dormir. Precisava caminhar.
Descubro então esta moto estacionada perpendicular à calçada. Na avenida deserta, aquela moto mais parece um monumento. Uma absurda moto solitária. Sugere uma escultura negra e solene. Desconfio que faça parte da rua tanto quanto os postes e as placas de trânsito. A moto ali está como se ali estivesse desde sempre. Introvertida, mergulhada no silêncio da noite. Lamento não poder fotografá-la.  Ficaria bem uma imagem daquela criatura solitária abaixo das luzes pálidas que saem dos postes. Talvez fotografasse o silêncio.
Deixo a moto para trás.
É quando percebo que não estou só. Surgindo de uma esquina, a três quadras, alguma coisa se move. É um homem e sua bicicleta. Não dessas de esportistas ou de exibicionistas. Uma bicicleta simples, modesta, que avança com algum esforço. Não se trata de um jovem. Curva-se a cada pedalada e esconde o rosto com um chapéu. Vindo em minha direção, não parece mover-se. Pedala como se navegasse nuvens ou emergisse de outra dimensão, estranhando esta em que vivemos.
Ao passar por mim, o homem move a cabeça e o chapéu num cumprimento demorado. Faço o mesmo, movendo a cabeça e o boné. E lá continuamos nós dois, cada um em seu caminho, sabendo que jamais nos reencontraremos. Não sei quem é, ele não sabe quem sou, mas fazemos parte de um mesmo silêncio. Ao longe ainda escuto o ranger das correntes cansadas da bicicleta. Ao final da quadra, volto-me para ver onde o ciclista estará e não o vejo mais.
Seu desaparecimento não me abala. Dobrou em alguma esquina ou retornou à dimensão da qual surgiu.
Paro de pensar. Também o pensamento me parece capaz de perturbar o estado de quietude que envolve a tudo.
As criaturas a minha volta estão em repouso, eis tudo. Pedras, animais e vegetais incluídos. Nenhum trepidar de trânsito, nada da neurose que nos atinge numa cidade, mesmo quando todos - ou a maioria - dormem. É um silêncio afirmativo, que esconde um nexo oculto entre todas as coisas, sejam homens, bicicletas ou motos.
Volto ao hotel. Não demora e estou dormindo. Não me permiti fazer ou pensar em nada que pudesse perturbar o silêncio.




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