A
saudade tem várias formas e nos cerca por todos os sentidos. Algumas estão
diante de nossos olhos. Aquele rosto, aquele sorriso, um gesto.
Saudades
através do tato são as mais delicadas e demolidoras. Há peles inesquecíveis. Há
lábios que demoram décadas, imutáveis, em nossa lembrança. Há abraços que ficam
grudados em nosso corpo para sempre. Não só abraços de amadas imortais, mas o
abraço de meu filho e o abraço difícil de meu pai – tão expansivo em tudo o
mais e tão econômico em abraços. Como doem com o tempo!
Depois,
os cheiros. Não de produtos químicos, mas de coisas e pessoas. O cheiro do café
fumegando na cozinha, arte na qual minha mãe era exímia. Da fruta colhida numa
árvore que debruçou um galho gentil em nossa direção. Aquele perfume que é
propriedade intransferível de uma mulher esquecida há décadas, mas que súbito nos
envolve no meio de uma multidão. De onde veio? Como chegou aqui? Onde ela está?
Ela
não está. É agora apenas um perfume.
As
vozes. Nada mais encantador do que uma voz amiga, ainda mais quando vem de longe,
de outros tempos e lugares. No entanto, é uma catástrofe se perguntam ao
telefone: sabe quem está falando? Muitas vezes não sabemos. Morremos de
vergonha. Quando a voz revela quem é, morremos de saudade.
Onde
encontrar aquelas gargalhadas no meio da madrugada? Ou o riso moleque, no sofá
da sala, diante de uma brincadeira afinal inocente? Cadê?
Já
não verei certas pessoas e elas me fazem falta. Onde estão meus pais? Cadê meus
tios, meus avós? Onde a primeira amada? Ela na saída do colégio, fingindo não
me ver e enchendo o ar com a voz alegre. O que terá disparado aquele sorriso? O
que disseram a ela ou do que se lembrou? Será que não me viu?
Meus
olhos sentem saudade. Gostaria de rever os olhos firmes de meu pai preocupados
com o futuro do filho estabanado. Mas temo não ser fiel às lembranças. Seria
assim mesmo? Foi nesse lugar? Seriam esses os olhos? Essa a cor da pele? Esse o
gosto da boca?
E
aquele olhar casual que trocamos, eu e uma jovem, na entrada de um teatro,
enquanto eu me atrapalhava, entre tantas pernas, para chegar ao meu lugar? Foi
uma fração de segundo, um lampejo, quase nada. Súbito havia apenas o encontro
de nossos olhos. Passei o resto do concerto com os ouvidos atentos ao piano,
mas meus olhos percorriam cada detalhe daquela jovem de cabelos negros, pele
muito clara e olhos que, por um segundo, foram meus. Nunca mais a vi.
Quando
passei as mãos adolescentes no corpo daquela primeira mulher que eu descobria
numa madrugada luminosa à beira mar, tudo vibrava nela e em mim. Tudo ainda vibra
nela e em mim, me parece.
Gosto
de pão saído do forno, de churrasco na grelha, de tainha assada, de lábios
róseos, a pele claríssima, o rosto iluminado. Entre os cheiros e sabores da
casa, aos 13 anos, conheci a alemãzinha mais apetecível do mundo. De sabor
macio e assustadiço.
O
cheiro da mata. O cheiro de pássaros, coelhos, preás, pombas, peixes, árvores
após a chuva, mato remexido denunciando algum animal que passara por ali. A
água do rio precipitando-se sobre as pedras e se abrindo num lago onde
mergulhávamos. Depois, o cheiro noturno das carícias proibidas ao final do
corredor.
Assim
se faz a saudade. De cheiros palpáveis, sabores indefiníveis, encontros
perdidos. Coisas que acariciamos cheios de cuidados, como os primeiros lápis de
cor. Barulhos, ruídos, música, a cadeira, a mesa, os paletós com braços
nervosos, os quadros na parede – quem estava inclinado, eles ou a parede? – e entre
as páginas de um livro abandonado no fundo de uma estante, a descoberta de uma
antiga carta para sempre esquecida.
Quem
me escrevia dizia sentir muitas saudades.
Só não sente saudades quem não viveu. Também tenho as minhas e fiz uns versinhos para uma pequena fração delas. Gostei muito da forma como você tratou o tema, Roberto. Cada frase dando conta de uma saudade sua remete a uma idêntica do leitor. Duvido que alguém passe em branco. Abraço.
ResponderExcluirhttp://www.recantodasletras.com.br/poesiasdesaudade/4465987
Acabo de favoritar seu blog...tocante, descreveu meus próprios tatos, cheiros e saudades...
ResponderExcluirSaudade! Eu sinto muita saudade de muitas coisas! Descobri que tudo aquilo que eu posso ter de volta no momento em que eu quiser não deixa saudades, apenas faz falta! Em compensação, todas as pessoas e coisas e lugares que eu nunca mais vou ver, isso sim é que deixa saudade!
ResponderExcluirSabe o que acho mais incrível num texto como esse, que trata de um sentimento tão (na maioria das vezes) sofrido, doído?
ResponderExcluirQue você, meu caro Roberto, consegue falar de saudade e usar o mesmo tipo de pontuação que usa em qualquer outro texto – seja ele sobre filosofia, política, história, arte, ou crônica de ficção: ponto, vírgula e, quando muito, umas interrogações pra nos deixar buscando respostas. Foge dos sinais gráficos que servem exatamente para intensificar as emoções – súbitas ou duradouras.
Nenhum ponto de exclamação pra nos dar a dimensão de seu sentimento. Nada de reticências pra sentirmos que a saudade não acabou ali.
Incrível! Impossível, pra maioria das gentes escrevedoras. Mas você tornou possível.
...
(Se “passei em branco”? Claro que não! Também vivi carícias proibidas ao final de um corredor. Sem cheiros noturnos.)
Desde que li esta sua página no blog, há um mês, senti um desejo imenso de me desmanchar em saudades também. Porém... Como desmanchar-me, como publicar meu “desmanchamento” sem parecer piegas?
ResponderExcluirAssim, contive meus desejos.
Dois ou três dias atrás, revisitando seu “Júlia” (1ª edição, março/2008, Editora Leitura Ltda., p 48), encontrei esta passagem:
“(...) Por isso pensavam que era triste. Na verdade, ela apenas sentia saudades – o que era um estranho paradoxo, pensava. Saudades do que não tivera, do que não conhecera.(...)”
E percebi que as mulheres – se não todas, quase todas – em algum momento, assim como Júlia, sentiram saudades do que não tiveram, do que não conheceram...
É mais uma forma de saudade...