quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Algumas formas de saudade








A saudade tem várias formas e nos cerca por todos os sentidos. Algumas estão diante de nossos olhos. Aquele rosto, aquele sorriso, um gesto.
Saudades através do tato são as mais delicadas e demolidoras. Há peles inesquecíveis. Há lábios que demoram décadas, imutáveis, em nossa lembrança. Há abraços que ficam grudados em nosso corpo para sempre. Não só abraços de amadas imortais, mas o abraço de meu filho e o abraço difícil de meu pai – tão expansivo em tudo o mais e tão econômico em abraços. Como doem com o tempo!
Depois, os cheiros. Não de produtos químicos, mas de coisas e pessoas. O cheiro do café fumegando na cozinha, arte na qual minha mãe era exímia. Da fruta colhida numa árvore que debruçou um galho gentil em nossa direção. Aquele perfume que é propriedade intransferível de uma mulher esquecida há décadas, mas que súbito nos envolve no meio de uma multidão. De onde veio? Como chegou aqui? Onde ela está?
Ela não está. É agora apenas um perfume.
As vozes. Nada mais encantador do que uma voz amiga, ainda mais quando vem de longe, de outros tempos e lugares. No entanto, é uma catástrofe se perguntam ao telefone: sabe quem está falando? Muitas vezes não sabemos. Morremos de vergonha. Quando a voz revela quem é, morremos de saudade.
Onde encontrar aquelas gargalhadas no meio da madrugada? Ou o riso moleque, no sofá da sala, diante de uma brincadeira afinal inocente? Cadê?
Já não verei certas pessoas e elas me fazem falta. Onde estão meus pais? Cadê meus tios, meus avós? Onde a primeira amada? Ela na saída do colégio, fingindo não me ver e enchendo o ar com a voz alegre. O que terá disparado aquele sorriso? O que disseram a ela ou do que se lembrou? Será que não me viu?
Meus olhos sentem saudade. Gostaria de rever os olhos firmes de meu pai preocupados com o futuro do filho estabanado. Mas temo não ser fiel às lembranças. Seria assim mesmo? Foi nesse lugar? Seriam esses os olhos? Essa a cor da pele? Esse o gosto da boca?
E aquele olhar casual que trocamos, eu e uma jovem, na entrada de um teatro, enquanto eu me atrapalhava, entre tantas pernas, para chegar ao meu lugar? Foi uma fração de segundo, um lampejo, quase nada. Súbito havia apenas o encontro de nossos olhos. Passei o resto do concerto com os ouvidos atentos ao piano, mas meus olhos percorriam cada detalhe daquela jovem de cabelos negros, pele muito clara e olhos que, por um segundo, foram meus. Nunca mais a vi.
Quando passei as mãos adolescentes no corpo daquela primeira mulher que eu descobria numa madrugada luminosa à beira mar, tudo vibrava nela e em mim. Tudo ainda vibra nela e em mim, me parece.
Gosto de pão saído do forno, de churrasco na grelha, de tainha assada, de lábios róseos, a pele claríssima, o rosto iluminado. Entre os cheiros e sabores da casa, aos 13 anos, conheci a alemãzinha mais apetecível do mundo. De sabor macio e assustadiço.
O cheiro da mata. O cheiro de pássaros, coelhos, preás, pombas, peixes, árvores após a chuva, mato remexido denunciando algum animal que passara por ali. A água do rio precipitando-se sobre as pedras e se abrindo num lago onde mergulhávamos. Depois, o cheiro noturno das carícias proibidas ao final do corredor.
Assim se faz a saudade. De cheiros palpáveis, sabores indefiníveis, encontros perdidos. Coisas que acariciamos cheios de cuidados, como os primeiros lápis de cor. Barulhos, ruídos, música, a cadeira, a mesa, os paletós com braços nervosos, os quadros na parede – quem estava inclinado, eles ou a parede? – e entre as páginas de um livro abandonado no fundo de uma estante, a descoberta de uma antiga carta para sempre esquecida.
Quem me escrevia dizia sentir muitas saudades.




5 comentários:

  1. Só não sente saudades quem não viveu. Também tenho as minhas e fiz uns versinhos para uma pequena fração delas. Gostei muito da forma como você tratou o tema, Roberto. Cada frase dando conta de uma saudade sua remete a uma idêntica do leitor. Duvido que alguém passe em branco. Abraço.

    http://www.recantodasletras.com.br/poesiasdesaudade/4465987

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  2. Acabo de favoritar seu blog...tocante, descreveu meus próprios tatos, cheiros e saudades...

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  3. Saudade! Eu sinto muita saudade de muitas coisas! Descobri que tudo aquilo que eu posso ter de volta no momento em que eu quiser não deixa saudades, apenas faz falta! Em compensação, todas as pessoas e coisas e lugares que eu nunca mais vou ver, isso sim é que deixa saudade!

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  4. Marco Aurélio Guimarães14 de janeiro de 2016 às 22:17

    Sabe o que acho mais incrível num texto como esse, que trata de um sentimento tão (na maioria das vezes) sofrido, doído?

    Que você, meu caro Roberto, consegue falar de saudade e usar o mesmo tipo de pontuação que usa em qualquer outro texto – seja ele sobre filosofia, política, história, arte, ou crônica de ficção: ponto, vírgula e, quando muito, umas interrogações pra nos deixar buscando respostas. Foge dos sinais gráficos que servem exatamente para intensificar as emoções – súbitas ou duradouras.

    Nenhum ponto de exclamação pra nos dar a dimensão de seu sentimento. Nada de reticências pra sentirmos que a saudade não acabou ali.

    Incrível! Impossível, pra maioria das gentes escrevedoras. Mas você tornou possível.
    ...
    (Se “passei em branco”? Claro que não! Também vivi carícias proibidas ao final de um corredor. Sem cheiros noturnos.)

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  5. guilhermina moeckel cavalli18 de fevereiro de 2016 às 15:01

    Desde que li esta sua página no blog, há um mês, senti um desejo imenso de me desmanchar em saudades também. Porém... Como desmanchar-me, como publicar meu “desmanchamento” sem parecer piegas?
    Assim, contive meus desejos.
    Dois ou três dias atrás, revisitando seu “Júlia” (1ª edição, março/2008, Editora Leitura Ltda., p 48), encontrei esta passagem:
    “(...) Por isso pensavam que era triste. Na verdade, ela apenas sentia saudades – o que era um estranho paradoxo, pensava. Saudades do que não tivera, do que não conhecera.(...)”
    E percebi que as mulheres – se não todas, quase todas – em algum momento, assim como Júlia, sentiram saudades do que não tiveram, do que não conheceram...


    É mais uma forma de saudade...

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