É admirável que Chico Anysio tenha
atravessado as mais de seis décadas de sua carreira percorrendo todas as
mídias. Começou no rádio e nele fez de tudo – foi imitador, apresentador,
comentarista de futebol, criador de programas e redator. Em tudo se saiu acima
do pedido. Chama a atenção o fato de que adquiriu do rádio uma voracidade
onívora. Tudo passava pelo seu filtro humorístico. Notícias do dia a dia,
grandes trapalhadas nacionais, personagens da política, do futebol, da chamada alta
sociedade e das classes populares. Nada escapava. E tudo, fosse um bordão, uma
piada, um chiste, um cacoete, uma canalhice, ele transformava em texto, em
personagem, em quadro, em narrativa cheia de humor e inteligência.
Outra coisa: Chico assumiu
inteiramente um personagem do folclore e dos costumes brasileiros, o contador
de causos. Acho que essa é a grande fonte de inúmeras narrativas brasileiras,
sejam elas eruditas ou populares. Se pensarmos bem, Riobaldo Tatarana (o
narrador de Grande sertão: veredas,
de Guimarães Rosa), é um contador de causos extremamente brilhante, assim como o
Coronel Ponciano de Azeredo Furtado (do delicioso O Coronel e o lobisomem, de José Cândido de Carvalho). O mesmo se
diga de vários narradores de obras de João Ubaldo Ribeiro, Lima Barreto, João
Antônio e tantos outros. No âmbito propriamente popular o contador de casos é onipresente.
Foi nesse personagem que Chico se inspirou, o que permitiu que se tornasse uma
espécie de romancista popular, desses que contam histórias para o prazer do
povo, na linguagem do povo e usando o povo como personagem central. Hoje,
quando os humoristas de uma nova geração vão buscar no standup norte-americano um modo de fazer humor, me parece que perdem
o rumo. O standup tem algo de
mecânico e cerebral, uma auto-esculhambação artificial do narrador e uma
escatologia próprias do humor americano e longe da tradição dos contadores de
causos brasileiros. O contador de causos jamais deprecia a si mesmo. Pode, no
entanto, ser irônico consigo mesmo e até não se levar a sério. É sobretudo um
observador refinado e um crítico mordaz das fraquezas e aventuras humanas.
E é nessa capacidade de criar
personagens saídos dos tipos populares – sejam eles ricos metidos a besta ou
pobres delirantes – que Chico construiu uma galeria que, dizem, chega a 209
personagens. É muito. Eis aí mais um talento de romancista popular. São tipos
únicos, em seus gestos, vozes, cacoetes, pensamentos e pequenos desastres ou
modos de superar as agruras da vida. Pode ser um jogador de futebol sem talento
e cachaceiro ou um velho professor que tem caspas e as atribui ao “suor do
cérebro”. São personagens de fato, não fantoches. Funcionam e vivem por si só.
Ficarão por aí, sem o Chico, como novos Quixotes.
Finalmente, Chico criou, à
sua maneira, um retrato panorâmico do Brasil. Um retrato cheio de humor, de
malandragem, de malícia, recuperando e preservando os ditos e a linguagem do
povo, a sabedoria popular e os equívocos de todos nós. Realizou assim um sonho
que muitos ficcionistas de nariz empinado fracassaram em realizar. Nesse gênero
mediático e popular Chico Anysio foi definitivamente imbatível.
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