terça-feira, 27 de março de 2012

Chico Anysio, o contador de causos

Maranguape vai colocar uma estátua de Chico Anysio caracterizado como Pantaleão

É admirável que Chico Anysio tenha atravessado as mais de seis décadas de sua carreira percorrendo todas as mídias. Começou no rádio e nele fez de tudo – foi imitador, apresentador, comentarista de futebol, criador de programas e redator. Em tudo se saiu acima do pedido. Chama a atenção o fato de que adquiriu do rádio uma voracidade onívora. Tudo passava pelo seu filtro humorístico. Notícias do dia a dia, grandes trapalhadas nacionais, personagens da política, do futebol, da chamada alta sociedade e das classes populares. Nada escapava. E tudo, fosse um bordão, uma piada, um chiste, um cacoete, uma canalhice, ele transformava em texto, em personagem, em quadro, em narrativa cheia de humor e inteligência.

Outra coisa: Chico assumiu inteiramente um personagem do folclore e dos costumes brasileiros, o contador de causos. Acho que essa é a grande fonte de inúmeras narrativas brasileiras, sejam elas eruditas ou populares. Se pensarmos bem, Riobaldo Tatarana (o narrador de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa), é um contador de causos extremamente brilhante, assim como o Coronel Ponciano de Azeredo Furtado (do delicioso O Coronel e o lobisomem, de José Cândido de Carvalho). O mesmo se diga de vários narradores de obras de João Ubaldo Ribeiro, Lima Barreto, João Antônio e tantos outros. No âmbito propriamente popular o contador de casos é onipresente. Foi nesse personagem que Chico se inspirou, o que permitiu que se tornasse uma espécie de romancista popular, desses que contam histórias para o prazer do povo, na linguagem do povo e usando o povo como personagem central. Hoje, quando os humoristas de uma nova geração vão buscar no standup norte-americano um modo de fazer humor, me parece que perdem o rumo. O standup tem algo de mecânico e cerebral, uma auto-esculhambação artificial do narrador e uma escatologia próprias do humor americano e longe da tradição dos contadores de causos brasileiros. O contador de causos jamais deprecia a si mesmo. Pode, no entanto, ser irônico consigo mesmo e até não se levar a sério. É sobretudo um observador refinado e um crítico mordaz das fraquezas e aventuras humanas.

E é nessa capacidade de criar personagens saídos dos tipos populares – sejam eles ricos metidos a besta ou pobres delirantes – que Chico construiu uma galeria que, dizem, chega a 209 personagens. É muito. Eis aí mais um talento de romancista popular. São tipos únicos, em seus gestos, vozes, cacoetes, pensamentos e pequenos desastres ou modos de superar as agruras da vida. Pode ser um jogador de futebol sem talento e cachaceiro ou um velho professor que tem caspas e as atribui ao “suor do cérebro”. São personagens de fato, não fantoches. Funcionam e vivem por si só. Ficarão por aí, sem o Chico, como novos Quixotes.

Finalmente, Chico criou, à sua maneira, um retrato panorâmico do Brasil. Um retrato cheio de humor, de malandragem, de malícia, recuperando e preservando os ditos e a linguagem do povo, a sabedoria popular e os equívocos de todos nós. Realizou assim um sonho que muitos ficcionistas de nariz empinado fracassaram em realizar. Nesse gênero mediático e popular Chico Anysio foi definitivamente imbatível.

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