Dia desses, tiroteando com o
controle remoto de canal em canal esbarrei numa entrevista com um chinês simpático
e bem articulado. Falava uma versão do português bastante razoável. Pelo que
entendi, é um empresário que representa uma associação de empresas exportadoras
da China. Mais um sinal de esperteza: é casado com uma brasileira.
Pois o chinês – não anotei o seu
nome – fez uma exposição interessante das razões, segundo ele, pelas quais a
China apresentou esse crescimento que assombra o mundo. É claro que driblou com
habilidade todas as perguntas que questionavam as condições de trabalho dos
operários na China ou o problema das liberdades civis e dos direitos humanos.
Bom de drible, o chinês.
Disse ele, ao criticar o modelo
brasileiro – ao ver dele, demasiado fechado ao capital estrangeiro, preocupado
em controlar a inflação, com juros altos atraindo capital especulativo – que os
chineses formaram uma grande quantidade de engenheiros, enquanto que o Brasil
continuou insistindo em formar advogados. E arrematou: “Os engenheiros querem
fazer coisas. Os advogados querem discutir”.
Eis como o simpático chinês fez
um instantâneo preciso de um dos traços da cultura brasileira. Somos um país
sufocado pela rala e pernóstica sapiência jurídica, pela atrofia das
legislações e, sobretudo, pela crença esdrúxula de que é com leis que se
governa e constrói um país. Insisto, como sempre: um país não é governado por
leis; um país governa suas leis. As leis resultam de um consenso do país e não
o contrário. Além disso, nem tudo está previsto em leis e, em particular, o
principal da coesão e das relações sociais não está em leis, mas em convicções
e crenças que movem seus habitantes e fixam seus valores. Hoje, o que falta ao
Brasil, não são leis – temos uma constituição gigantesca e uma quantidade não
sabida de leis, sendo que umas pegam e outras não – mas a criação de valores
básicos segundo os quais agir. Quando um governante (Lula, para os esquecidos)
diz que coisas como o caixa dois “todo mundo faz”, ele está não apenas
invalidando leis, mas destruindo o que deveria ser uma convicção fundamental: é
preciso agir com ética, é preciso respeitar o que ordena a sociedade. O
contrário é a instituição do cada um por si e salve-se quem puder.
Trata-se de uma típica sociedade
de advogados, para os quais, mesmo a maior atrocidade, se não for prevista em
leis, é perfeitamente aceitável.
Pois a partir da observação do
empresário chinês, lembrei-me de uma observação de Steve Jobs que, com sua
compulsão obsessiva, repetiu muitas vezes que os EUA precisavam formar levas e
mais levas de engenheiros e dar um basta no predomínio dos advogados.
Cada um a sua maneira, Brasil e
EUA são nisso semelhantes. Uma sociedade pensada por advogados, na qual muito
se discute e nada se faz. Vejam, por exemplo, o PAC. Anunciado como a redenção
final da pátria, ninguém sabe aonde chegou, o que foi feito, sempre que se mexe
no assunto se encontra obras pela metade, obras que não saíram do papel. Vejam,
por outro lado, a imagem que governantes vendem de um Brasil como a potência
emergente enquanto nas escolas se vê o predomínio da carência e da ignorância,
nos hospitais faltam algodão e cuidados, nas estradas sobram buracos e acidentes
etc. etc. Veja-se também o modo como o Brasil está conduzindo a preparação para
essa (lamento dizer) malfadada Copa de 2014. O improviso, as discussões
infindáveis, o faz de conta. Dinheiro do país para alimentar os delírios de
grandeza da FIFA e seus velhinhos corruptos e para encher de empolgação os
patrioteiros de sempre, que tomam carona nos feitos do futebol. Bom, ou muito
me engano ou dessa vez quebrarão a cara, pois o Brasil não deve ganhar essa
Copa, não tem nem técnico nem jogadores à altura. Posso quebrar a cara, mas é
isso que me ocorre.
Enfim, a farra com o dinheiro
público, os planos mirabolantes, tudo isso casa com a ausência de trabalho
efetivo e tem a ver com a criação de fantasias como o PAC, a Copa, o julgamento
adiado do mensalão, o pré-sal que não rendeu ainda uma só gota de petróleo mas
que agita as discussões de juristas e políticos, cada um querendo puxar uma
brasa para a sua sardinha, numa briga entre estados como não se via há muito
tempo.
De tudo isso, fica uma lição
sobre as distorções brasileiras, ainda que o nosso simpático empresário chinês
que me deu o mote para esse texto, precisasse explicar melhor como, onde, em
que condições, com quais direitos e limitações, trabalha a mão de obra barata
da China. O “socialismo” à moda chinesa conseguiu esse milagre: um Estado ditatorial,
um povo domesticado e um capitalismo socialista. Não há concorrência que dê
conta.
Dia desses, surpreendido por uma
chuva violenta no centro da cidade, parei numa barraquinha e resolvi comprar um
guarda-chuva. Chinês, é claro. Paguei dez pilas e perguntei à senhora que me
atendeu se era mais um daqueles guarda-chuvas que se desmanchavam no segundo
temporal. Ela sorriu, embolsou previamente meus dez pilas e disse, com
sabedoria: “Se a primeira chuva não for com ventania...”
Eis aí um belo retrato da indústria
chinesa feito por essa senhora que atua como camelô, tão pertinente quanto o
retrato do Brasil feito pelo simpático empresário chinês.
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